Repetia-se diariamente, dois sacos de milho, outro de pão
humedecido, os pombos da Correnteza, aéreo exército de Sintra, chegavam dos
beirados e janelas, dos plátanos e das antenas, para o matinal bodo que o velho
Ezequiel preparava, alados amigos rasgando os céus do Rio do Porto,
deixando no horizonte o oceano e a várzea. Serpenteantes patrulhas dos céus,
arrulhando, ora exprimiam contentamento pelo sol e pelas cores que lentamente a serra devolvia, como silenciosos calavam a visão da Vila dos Pombos
fenecendo pela incúria dos homens, sem visão nem milho para tais pombais.
Ezequiel conhecia todos os seus meninos, para cima de cem. À sua aproximação, vindo das Murtas, de todos os lados acorriam a saudá-lo, do telhado da Câmara e dos plátanos renascidos, após os cortes do Inverno, deixando o jardim repleto de bicos e asas, columbinas companhias vindas dos céus da urbe, onde em baixo, alheios, acelerados carros e ainda mais acelerados humanos corriam desencontrados para as suas vidas fugazes. Ezequiel, viúvo e solitário, passava-lhes ao lado, o seu mundo eram os pequenos companheiros, arrulhando e rasando sobre os telhados vermelhos.
De plumagem cinzenta, mais clara nas asas que no peito, cauda riscada e pescoço esverdeado, Óscar era um pombo diferente. O Outono trazia-o de amores por uma fêmea do Valenças. Macho orgulhoso, seguia-a, e ambos se seduziam com carinhosos arrulhos, alimentando-se mutuamente. O ninho estava feito, numa plataforma de ramos, antes que Novembro chegasse, novos rebentos piariam, contentes e promissores. Funcionários da Câmara procuravam dar-lhes cobro, como se de ratos alados se tratasse, ainda assim resistiam, unidos.
Naquela manhã, Óscar, sempre o primeiro a comer da mão do Ezequiel, chegou estranho, o velho que o vira nascer, bem como ao pai e ao pai do pai, ficou curioso, o amigo de penas aparentava falta de apetite:
-Que se passa, velho amigo? Onde está o rei de Sintra, conduzindo o mais belo bailado que estas serras já viram? -indagou o velho Ezequiel.
Óscar trazia um olhar perdido, mortiço, conhecia todas as cúpulas e troncos, estátuas e pelourinhos, mas vinha angustiado:
-Ezequiel, há quantos anos renovamos o nosso encontro nas sombras da Correnteza? -perguntou, entristecido.
-Muitos, companheiro, muitos. Do tempo em que o Zé Alfredo ali junto à estátua pintava as suas aguarelas, e a velha Rita, com a cesta à cabeça, vendia queijadas aos turistas. Já lá estão, todos! -o velho recordava figuras queridas, sumidos cúmplices de passeios e charlas, só os pombos lhe restavam, estes voavam já, noutros céus mais etéreos.
-A Vila está a morrer, Ezequiel, todos os dias o sinto. Levaram a cúpula do Paris, o Netto foi invadido pelos ratos. Até cães vadios tomaram conta das ruas. Está tudo entregue aos bichos!.. -nostálgico de outras Sintras, Óscar, melancólico, olhava o palácio em silêncio, majestoso, mas com mazelas.
-A Vila Velha mudou, Óscar, já lá não nascem humanos, e os que restam, partem, rendidos aos mercadores de queijadas e aos carros invasores. A Vila dos Pombos corre perigo, meu amigo!
Qual velha senhora, com pó de arroz disfarçando a crueza das rugas e a fragilidade da carne, a Vila envelhecia, iludindo com obras de fachada e suposta renovação as hordas de turistas de ocasião, em calções e óculos escuros. Óscar, agora no ombro de Ezequiel, como quem revela um segredo, continuou:
-A Estefânea morreu, velho amigo, o ginásio do Sintrense, os grafittis dos vândalos, os prédios em mau estado... Um destes dias pousei no busto do Cambournac, e o velho chorava, coitado, antes descansava sereno no meio das árvores, agora é o inerte polícia de um trânsito infernal!
Uma pomba arrulhando chegou entretanto, era a companheira de Óscar, no telhado do Valenças um cúmplice ovo branco acabava de renovar a promessa de novas primaveras. Óscar acariciou-a com a cabeça, Ezequiel, pau-de-cabeleira, sorriu, embevecido, a sua pomba infelizmente partira já. Esvoaçando os dois, logo seguidos do fiel bando que ao passar escurecia os céus, partiram a patrulhar Seteais e a beber na Fonte da Pipa, no dia seguinte voltariam, como muitos antes deles, no eterno renovar do pão e do milho que só na Correnteza ocorria. Ezequiel, deixando-se ficar, sentou-se num banco mirando a serra. Qual pombo velho, partiria também um dia, os seus dias eram cinzentos mas uma réstia de azul-esperança invadiu-o, outros Óscares e outros Ezequiéis renovariam o dançado voo nos eternos céus da Velha Senhora.
Ezequiel conhecia todos os seus meninos, para cima de cem. À sua aproximação, vindo das Murtas, de todos os lados acorriam a saudá-lo, do telhado da Câmara e dos plátanos renascidos, após os cortes do Inverno, deixando o jardim repleto de bicos e asas, columbinas companhias vindas dos céus da urbe, onde em baixo, alheios, acelerados carros e ainda mais acelerados humanos corriam desencontrados para as suas vidas fugazes. Ezequiel, viúvo e solitário, passava-lhes ao lado, o seu mundo eram os pequenos companheiros, arrulhando e rasando sobre os telhados vermelhos.
De plumagem cinzenta, mais clara nas asas que no peito, cauda riscada e pescoço esverdeado, Óscar era um pombo diferente. O Outono trazia-o de amores por uma fêmea do Valenças. Macho orgulhoso, seguia-a, e ambos se seduziam com carinhosos arrulhos, alimentando-se mutuamente. O ninho estava feito, numa plataforma de ramos, antes que Novembro chegasse, novos rebentos piariam, contentes e promissores. Funcionários da Câmara procuravam dar-lhes cobro, como se de ratos alados se tratasse, ainda assim resistiam, unidos.
Naquela manhã, Óscar, sempre o primeiro a comer da mão do Ezequiel, chegou estranho, o velho que o vira nascer, bem como ao pai e ao pai do pai, ficou curioso, o amigo de penas aparentava falta de apetite:
-Que se passa, velho amigo? Onde está o rei de Sintra, conduzindo o mais belo bailado que estas serras já viram? -indagou o velho Ezequiel.
Óscar trazia um olhar perdido, mortiço, conhecia todas as cúpulas e troncos, estátuas e pelourinhos, mas vinha angustiado:
-Ezequiel, há quantos anos renovamos o nosso encontro nas sombras da Correnteza? -perguntou, entristecido.
-Muitos, companheiro, muitos. Do tempo em que o Zé Alfredo ali junto à estátua pintava as suas aguarelas, e a velha Rita, com a cesta à cabeça, vendia queijadas aos turistas. Já lá estão, todos! -o velho recordava figuras queridas, sumidos cúmplices de passeios e charlas, só os pombos lhe restavam, estes voavam já, noutros céus mais etéreos.
-A Vila está a morrer, Ezequiel, todos os dias o sinto. Levaram a cúpula do Paris, o Netto foi invadido pelos ratos. Até cães vadios tomaram conta das ruas. Está tudo entregue aos bichos!.. -nostálgico de outras Sintras, Óscar, melancólico, olhava o palácio em silêncio, majestoso, mas com mazelas.
-A Vila Velha mudou, Óscar, já lá não nascem humanos, e os que restam, partem, rendidos aos mercadores de queijadas e aos carros invasores. A Vila dos Pombos corre perigo, meu amigo!
Qual velha senhora, com pó de arroz disfarçando a crueza das rugas e a fragilidade da carne, a Vila envelhecia, iludindo com obras de fachada e suposta renovação as hordas de turistas de ocasião, em calções e óculos escuros. Óscar, agora no ombro de Ezequiel, como quem revela um segredo, continuou:
-A Estefânea morreu, velho amigo, o ginásio do Sintrense, os grafittis dos vândalos, os prédios em mau estado... Um destes dias pousei no busto do Cambournac, e o velho chorava, coitado, antes descansava sereno no meio das árvores, agora é o inerte polícia de um trânsito infernal!
Uma pomba arrulhando chegou entretanto, era a companheira de Óscar, no telhado do Valenças um cúmplice ovo branco acabava de renovar a promessa de novas primaveras. Óscar acariciou-a com a cabeça, Ezequiel, pau-de-cabeleira, sorriu, embevecido, a sua pomba infelizmente partira já. Esvoaçando os dois, logo seguidos do fiel bando que ao passar escurecia os céus, partiram a patrulhar Seteais e a beber na Fonte da Pipa, no dia seguinte voltariam, como muitos antes deles, no eterno renovar do pão e do milho que só na Correnteza ocorria. Ezequiel, deixando-se ficar, sentou-se num banco mirando a serra. Qual pombo velho, partiria também um dia, os seus dias eram cinzentos mas uma réstia de azul-esperança invadiu-o, outros Óscares e outros Ezequiéis renovariam o dançado voo nos eternos céus da Velha Senhora.
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