sábado, 13 de outubro de 2012

Aquele vapor em Alcântara

Uma história para o fim de semana.


O dia amanheceu cinzento, uma chuva miudinha regando a Rocha do Conde de Óbidos à chegada do “Alcântara”, vindo de Dover.Pessoa esperava o ilustre visitante que apenas conhecia pela obra, e da reputação perturbadora:Aleister Crowley, conhecido pigmalião e apologista do satanismo, movido por uma carta astrológica que lhe enviara, chegava para o conhecer.
Fernando Pessoa detestava barcos. Nunca  se lhe desvanecera aquela viagem trinta anos antes, no Koenig, trazendo de Durban o féretro de Madalena Henriqueta, a irmã precocemente falecida. Misantropo e avesso a eventos sociais, não conseguira dizer não.
-Mr.Crowley?Welcome to Lisbon! cumprimentou, num inglês cristalino, civilizado,no qual gostava de se expressar.
-Prazer em conhecê-lo, Pessoa! É tal e qual como mo descreveram! -rosnou um inglês gordo e baixo, ar banal e um leve tique nos olhos -Deixe-me apresentar-lhe fraulein Jaeger, a minha companheira de viagem- adiantou, apontando uma loura enterrada debaixo de um chapéu da moda, envergando um vison cor de rato.Pessoa saudou-a com um leve toque no chapéu, e pegando nas malas, levou-os num Chevrolet até ao Avenida Palace, logo aí acertando novo encontro, depois de merecido repouso.
Na manhã seguinte, levou-os a Sintra, pela escalavrada estrada de Cascais:
-Pois é, Pessoa, fiquei muito intrigado com a carta astrológica que me enviou! Bateu na mouche! Nada a ver com os charlatães que por aí campeiam! -foi desfiando o inglês.
-Obrigado, Sr Crowley. A hora e minutos do nascimento são muito importantes nestas coisas, sabe…
-Trate-me por Aleister -atalhou o inglês.
-Muito bem. Sabe, desde sempre me atraíram os estudos astrológicos. Em tempos pensei até em abrir um consultório, e cheguei a escrever com um pseudónimo, Raphael Baldaya…
-Eu sei, eu sei…-atalhou Crowley, denunciando saber mais do que aparentava. Você também fez parte do Golden Dawn, certo?
-Ah, também sabe...? o português estranhou a referência à associação rosa-cruz, pelos vistos, Crowley pertencia também. Parando na Boca do Inferno, levou-os a ver as vistas, fraulein Jaeger, mais interessada na maquilhagem, aproveitou para renovar o baton, vermelho vivo.
-Gosto muito do mar, Aleister. Sou dum país em que o mar é sofrimento, e força ao mesmo tempo - olhando o horizonte e segurando o chapéu para não voar com o vento gélido, Pessoa mantinha-se melancólico, tolhido pela nortada matinal.
-Sim, espaço fabuloso. Foi aqui que viveu o tal do vosso Adamastor?
-Não- sorriu, a medo- mas estamos num país onde se vêm adamastores por todo o lado…
Seguiram para Sintra. Crowley achou sublime, descortinando símbolos inéditos nas pedras silenciosas e musgosas.
-Há aqui a mão do Templo, Aleister, muitas coisas estão escritas nestes lugares, apelando à necessidade de afrontar o império da ignorância.
-Um Irmão reconhece sempre a presença espiritual... - sentenciou Crowley, também ele iniciado nos labirintos da gnose. Oiça, tenho uma proposta para si: gostava de editar neste país alguns dos meus livros, e você podia ser o meu tradutor, que me diz?
-Interessante. Já li atentamente o  seu Hino a Pã, e….
-E gostou? Antes que Pessoa respondesse,  lançou-lhe uma frase enigmática: Lembre-se que desde a morte física até à percepção de que ela apenas é ilusão, há que passar a estalagem do assombro, despir-se do corpo mental. Só então o corpo será divino! É essa a busca, o desafio! –arengou, enfatizando o sotaque do Surrey.
-Eu sei, Aleister! Já várias vezes morri antes da verdadeira morte….
O diálogo transformava-se em monólogo, ambos ansiando por batalhas para as quais aguardavam sinais. Já bebia uma Águia Real!- confessou Pessoa, com a mente na sua aguardente favorita.
A ameaça de chuva fê-los voltar ao hotel. Ainda se viram mais duas vezes, em Lisboa, deixando um último encontro para a semana seguinte. Pessoa não se podia dar ao luxo de dispensar o emprego como correspondente comercial, donde lhe vinha o parco vencimento, havia que intercalar. Chegado o dia aprazado, à hora combinada compareceu no lobby do Avenida Palace, sem que Crowley ou fraulein Jaeger  aparecessem.
-O sr Aleister Crowley não está? Ou a sra Hani Jaeger? -sondou junto do recepcionista.
-A menina Jaeger saiu no vapor de dia 19 para Londres, caro senhor, e o sr. Crowley também já não está alojado no hotel. Saiu e deixou as contas pagas! -informou o empregado, impassível.
Pessoa ficou admirado. Desaparecera sem deixar rasto, um bilhete sequer, tal como aparecera em Lisboa, movido por uma carta astrológica, sumira sem dizer adeus. Ainda escreveu para Inglaterra, mas nunca mais soube dele. Só uma vez, meses depois, um agente da PVDE o procurou no escritório, fazendo perguntas sobre os encontros com o inglês, já jornais teciam intrigas em torno da estranha visita. Ainda voltou à Boca do Inferno, onde mentalmente reviu as conversas havidas. Corria que aí se teria suicidado.
Com o tempo, esqueceu Crowley, afogando-se em Águia Real e absinto, voltando a fecundar o papel pardo do Abel Pereira da Fonseca com palavras sangradas e confissões impotentes, ortónimo em transe libertando os tumultos interiores que o patrulhavam. Que se danasse, onde quer que estivesse.
I know not what tomorrow will bring!- rematou, bebendo de um trago e saindo do armazém do Abel a romper o nevoeiro de Lisboa.

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