segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Defender o património de Sintra é...



Defender o património, nos tempos que correm, é mais que nunca  um dever cívico,  porque, avaras, as verbas encolhem, e o interesse público também. Para os militantes dessa causa, este deve porém ser um momento de vigília, e de não deixar que a frágil árvore desapareça na floresta densa de dificuldades, cortes e silêncios motivados pela ditadura da dívida, ou abocanhada por um qualquer Leviathan.
Defender o património, nestes dias cinzentos (dias de Sintra, a nostálgica) é estimular a cidadania e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a auto-estima e o “sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajecto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.
Defender o património é zelar por restauros no Palácio de Queluz, repor a estatuária nos Capuchos, repensar o estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir local, devolver vida e criatividade ao Centro Histórico, à Estefânea, às pegadas de Carenque ou à casa da Gandarinha.
Defender o património é estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, actuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás do protagonismo ou da negação pela negação.
Defender o património é revitalizar a Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D.Diniz e o Rio do Porto, repor o fontário manuelino e a cúpula do Café Paris, intervir na Peninha e rever o preço dos bilhetes, instalar industrias criativas e empresas startup, residências artísticas e artistas sem ser a recibos verdes.
Defender o património é ser ouvido antes das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas verdes, implementar um Plano Verde pró-activo, obviar arborícidios e deixar crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas milenares, ouvir o som da água dos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa guarda de honra dos plátanos.
Defender o património é defender o direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramiscal néctar ou duma noz de Galamares.
Defender o património é divulgar e proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas, recuperar as fontes de água, classificar, promover classificações novas e divulgar as mais antigas.
Defender o património é tocar a rebate no campanário, sangrar a pena revoltada, cavalgar a comunicação com a serenidade das emergências para  tranquilidade das consciências, visitar, escrever, protestar, ajudar, ouvir e ser ouvido, passar palavra, dar o murro certeiro e saudar o adversário, por vezes  a inércia, outras a ignorância, as mais das vezes a incúria ou miopia.
Defender o património é vivê-lo e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.
Defender o património é pugnar pelo valioso presente que resultará da aliança da memória com a auto-estima, da singularidade com o talento, da polis com os seus moradores, dos conventos, palácios e moinhos, com a serra, as tapadas ou os lapiás.
Defender o património é aguarelar os chalés de Raul Lino e o traço de Norte Júnior e Adães Bermudes, a pedra esculpida de José da Fonseca ou a esculpida palavra do Eça, Francisco Costa, M.S.Lourenço ou Gabriela Llansol.
Defender o património é recordar os que trilharam o caminho, erguendo a tocha dos seres maiores, dos eremitas jerónimos ao solitário Gerard de Visme, do senhor da Penha Verde aos novecentistas bretões, cavaleiros da finança e poetas proscritos, do rei artista ao Carvalho da Pena, jardineiros de Deus na fértil horta de Klingsor.
Defender o património é chamar à formatura Cardim Ribeiro, Vítor Serrão, João Cachado, Adriana Jones, Francisco Caldeira Cabral, Diogo Lino Pimentel, António Lamas, Gerald Luckurst, Maria Almira Medina, Emma Gilbert, Hermínio Santos, Eugénio Montoito, Pedro Macieira, Emília Reis, Cortêz Fernandes, Fernando Castelo, Teresa Caetano, João Rodil, Inês Ferro, Cruz Alves, Ruy Oliveira, Martins Carneiro, Pedro Flor, Jorge Trigo ou Carlos Manique, entre os muitos que em boa hora renderam Viana da Mota, Mário de Azevedo Gomes, José Alfredo, Joaquim Fontes, Silva Marques, António Medina Júnior, Félix Alves Pereira, Octávio Veiga Ferreira, Dorita Castel-Branco, Milly Possoz, Carlos Viseu ou Anjos Teixeira, numa lista sempre incompleta e várias vezes anónima.
Defender o património é poder ver teatro, Alvim, Rui Mário ou Zé Sabugo, Susana Gaspar e Paulo Cintrão, Gil Matias e Paulo Taful; escutar grupos corais com Miguel Anastácio ou Pedro d’Orey, o Conservatório e os Bombos, ler Miguel Real e Raquel Ochoa, apreciar a pintura de Edmundo Cruz, pensar Cynthia com Jorge Menezes, desfiar Orbesirindo e novas sonoridades, reiventando a arte em narrativas dum presente capturado e desbravando  patrimónios de afectos.
Defender o património é estar vivo. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Fundamentalmente, por Nós.

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