segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Carta de Chamada para 2013



2013 tem que representar um momento de viragem no lodaçal esquizofrénico em que a nossa vida colectiva, e por consequência a nossa vida pessoal se transformou. Falta a esperança, essa palavra talismã, e falta mostrar o osso com que, como o cão de Pavlov, de novo haveremos de voltar a ladrar. Para que tal aconteça, há que levantar do sofá, largar o comando da televisão e o asténico isolamento das redes sociais, silencioso espaço para gritar desesperos, buscar cumplicidades, e, todavia, nada decidir que altere o pathos dum reino de novo cadaveroso de anormal normalidade.

Antes de um inesperado Abril, muitos de nós lutaram contra a liberdade raptada, uma guerra anacrónica e por um futuro que por gerações nos foi negado, numa lógica de inevitabilidade por entre saudados costumes de brandura, que escondiam um povo amordaçado mas secular lutador. Um dia, fruto dessa guerra, surda mas germinal, tudo voltou a ser possível, e o Futuro teve rosto, calendário, protagonistas, muitos cães e muitos Pavlovs, ladrou-se e latiu-se, e apareceram ossos, carne, ração. Fez-se a democracia, mudaram-se retratos, discursos, atitudes, e, ao sétimo dia, o povo descansou, contente com a obra feita, e entregou-se à volúpia consumista, ao hedonismo egoísta, à anomia social, de bom selvagem, o indígena ficou tão só selvagem, com casas T3 em Massamá, férias no Algarve ou carro novo cada três anos. Barato, o vil metal abundou, o maná igualmente, triunfantes mas cegos pelo sol, havia-se alcançada a Terra Prometida, depois de anos a errar no deserto depois dos grilhões do faraó. Silencioso, porém, o veneno dos inimigos  fervia no caldeirão, acelerado pelo novo metal da Europa e pelos trinta dinheiros com que a ele nos rendemos, finalmente leais a César, e nas suas teutónicas mas capciosas mãos. Um dia, legiões de cobradores chegaram a cobrar o dízimo, e, qual Sodoma, tudo ruiu então, transformado em sal e às mãos dos que na penumbra manobravam, sabendo da fraqueza dos deslumbrados.

Como na caverna de Platão, onde agora, cegos e aprisionados uivamos a perda e buscamos um rumo, haverá de chegar a luz, do fogo primeiro, mas cristalina e pura, e anunciando um novo dia, depois. Mas tal não virá de sortilégio do Olimpo, antes imporá a necessária revolta dos escravos, o quebrar das algemas, a união denodada e sem temores. Imporá pôr à prova se os escravos merecem ser um país ou, erráticamente, mero quilombo de deserdados em fuga e com liberdade vigiada.

Os dias são de desespero e de spleen, chamamentos de Circe e apelos à fuga de Ítaca, para, assustados, sulcar fronteiras, ziguezagueando a vida e trocando voltas ao futuro, dias de sofrimento, exaustão, entre a loucura e a entropia, o estilhaçar de sonhos ou o seu cruel adiamento. É chegado o momento da renovação, do regresso da alva Iemanjá e dum assomo de magia que faça das fraquezas forças, dos rebeldes líderes, das ideias planos e deste rincão desígnio. O grande exército do Futuro, dos que se indignem com consequência, ajam com sabedoria, tracem planos consistentes e de diferença, e que, reconquistada a chama, a reponham na pira sagrada onde se venere a dignidade e perspective um Devir.

Um calendário é uma sucessão de luas e sóis, chuvas e secas, colheitas e gestações. 2013, o ano que na roda do tempo humano nos cabe agora, nasce no Inverno, num inóspito inverno em que um tentacular inferno capturou as nossas vidas e as mantêm longe de Ítaca, num mar encapelado, de Circes e Polifemos, ventos gélidos e trovões açoitantes. Mas, ao Inverno sucederá a Primavera, e de novo o Verão. Lento e silencioso, o Futuro prepara o seu caminho.

A esperança sem mobilização, equivale a resignação. Uma solução há apenas: a de sermos militantes cavaleiros da esperança ou inúteis escravos da resignação. Entremos em 2013  pois, convocados que estamos para a sagrada missão de porfiar Futuro e capturar a Luz, para tanto levantando firmes a cintilante espada da dignidade. Feliz Ano Novo!

domingo, 30 de dezembro de 2012

O Holandês Voador



Adelino Faleiro reformara-se do ensino ia para dois anos. Entretido com os livros e os longos passeios a pé, a conselho médico, diariamente fazia o calçadão da Praia Grande, terminando com uma bica no Angra, onde o Faísca e o Marinho faziam o ponto de situação do campeonato, com ele, sportinguista ferrenho, sempre à defesa na conversa. Estudioso do mar e de naufrágios, recordava que o próprio Angra devia o nome a um cargueiro  ali encalhado anos antes, aberto pelo Fortunato, concessionário da praia, tosco barraco na época, mas hoje muito frequentado.

Naquela manhã de Dezembro o nevoeiro caía denso sobre a praia e um vento de nortada soprava a espuma das ondas, frio e cortante. Alheio ao frio, Adelino saiu para o habitual passeio matinal, como de costume terminaria com uma bica no Angra. Época baixa e dia de semana, a poucos dias do fim de ano,  pouca gente circulava, um velho passeava os cães e um ou outro surfista madrugador desafiava as ondas, o cheiro do iodo abria o apetite para o almoço, mais tarde. O neto acompanhou-o nesse dia, a promessa de um tablet tirara o  pequeno Simão da cama, depois do passeio seguiriam para o shopping, às compras.

No horizonte, encoberto por denso nevoeiro, Simão, até ali absorto com os headphones, descortinou um navio com velas, aparentava ser um barco antigo, como os dos filmes de piratas. Adelino, já fraco de vista, e pondo os óculos, nada viu porém, podia ser a Sagres ou o Creoula, mas Simão achou que não, uma das velas parecia rota e o barco oscilava, como se estivesse à deriva. Acordado para as suas histórias de naufrágios, Adelino lembrou-se duma que talvez o neto não conhecesse:

-Simão, alguma vez ouviste falar do “Holandês Voador”?

-“Holandês Voador”? Não, avô, nunca. É algum tipo de avião?

-Não, não…- qual velho lobo-do-mar, passou a narrar mais uma das infindáveis histórias, muitas Simão escutara já, tinha mesmo no quarto uma bandeira negra de piratas.

-O “Holandês Voador” foi um navio que há muitos anos navegou na zona do Cabo da Boa Esperança, tendo como destino final Amesterdão. Durante uma tempestade, o capitão Van der Decken recusou-se a desviar o barco, apesar dos pedidos da tripulação, e monstruosas ondas fustigaram o navio, enquanto ele cantava e fumava o seu cachimbo. Desesperados, muitos dos tripulantes amotinaram-se, mas o capitão, alcoolizado, matou o chefe e atirou o corpo ao mar. No céu, as nuvens abriram-se nessa altura, e escutou-se uma voz, recriminando-o. Van Der Decken apontou ao céu, mas a pistola explodiu-lhe na mão, e a voz lançou-lhe uma praga: “ Por esse teu acto, ficas condenado a navegar pelos oceanos toda a eternidade com uma tripulação de mortos, e nunca mais terás descanso. Bílis será a tua bebida, e um ferro quente marcará a tua carne”.

Simão achou a história fascinante, era um pouco como os Piratas das Caraíbas, com o Johnny Depp, ao fundo, enevoado, o barco continuava a oscilar, Simão jurou mesmo ter escutado tiros. O avô descansou-o, era uma lenda como muitas outras, os mistérios do mar imenso e mentes febris sempre tinham sido férteis em histórias mirabolantes. Minutos mais tarde, o barco desaparecera, ao longe, apenas mar e horizonte. Já a caminho do Angra, Adelino concluiu o relato ao neto:

-Há muitos relatos de avistamentos do “Holandês Voador”, umas vezes por marinheiros experientes, outras por olhares toldados pelo álcool. A minha convicção é a de que o capitão vai errar para sempre sem destino, com as suas blasfémias e a mão queimada…

Na esplanada do Angra, o nevoeiro dissipou-se entretanto, e mais surfistas se juntaram no areal desafiando as ondas frias, no horizonte, apenas o azul de um dia que apesar de começar cinzento iria afinal ser solarengo. Avô e neto sentaram-se, olhando o mar, e passados minutos lá apareceu o Faísca a atender o pedido, algo irritado por sinal. Adelino, que já o conhecia há muito, sondou o motivo da má disposição:

-Então, Faísca, dormiste mal esta noite, ou houve passarinho na costa? -trinta anos de praia permitiam-lhe alguma familiaridade…

-Nem me diga nada, dr. Adelino. Tenho lá dentro um estrangeiro, um holandês que está ali desde que abrimos, e só pede absintos. Já partiu dois copos, tal é ela! De vez em quando olha para a praia e começa a gritar na língua dele, estou a ver que ainda temos de chamar a guarda!

Ainda com a história do avô nos ouvidos, Simão espreitou para o balcão do Angra, a observar o holandês. Era alto, de pele enrugada, o cabelo louro em desalinho. Com a mão esquerda, segurava o copo, já vazio, a da direita pareceu-lhe estranha, a um segundo olhar, reparou  estar cicatrizada, e apenas ter dois dedos. No horizonte, o sol era mais azul agora, com o esfumar do nevoeiro também o navio se dissipara. Vistas bem as coisas, melhor seria irem ao shopping comprar o prometido tablet...

O ovo Fabergé



O tenente Milhazes não sabia o que pensar, chamado a averiguar o roubo dum carro perto do Chalé Biester, uma busca na adega conduzira ao baú com a reluzente peça de ourivesaria, a PJ fora chamada. O inspector Caldeira, da Unidade de Cooperação Internacional pasmou, especialista em furtos de arte, reconheceu ali um tesouro raro e precioso:

-Então, inspector, que me diz? -sondou o tenente, curioso.

-Ou me engano muito, ou há aqui coisa da grossa, tenente -discorreu, observando a peça - nada mais nada menos que um dos famosos ovos Fabergé!

O chalé, construído em 1890 na estrada da Pena por Ernesto Biester, comerciante de origem alemã radicado em Portugal, estava há tempos encerrado, o tenente Milhazes apenas recordava a vez em que a GNR fora requisitada para regular o trânsito, quando Roman Polanski ali rodara cenas de “A Nona Porta", normalmente os donos estavam fora.

-Os Ovos Fabergé são obras-primas da joalharia, e foram criados para os czares da Rússia. Veja, tem uma combinação de esmalte, metais e pedras preciosas. Normalmente escondiam surpresas e miniaturas oferecidas na Páscoa entre os membros da família imperial. Valem uma fortuna! -o ovo era efectivamente deslumbrante, peça única.

-E como terá vindo aqui parar? Já contactámos o representante do proprietário, desconhecia a existência deste baú, deve ter sido posto ali recentemente.

-Ou guardado à espera de quem o viesse buscar…-discorreu o inspector, congeminando pistas prováveis. Levado para Lisboa, o ovo foi examinado por um perito em ourivesaria, Agatão Prazeres, que escancarou os olhos à vista da raridade:

-Inspector, tem aqui um tesouro! É efectivamente um Fabergé! E passou a explicar:

-Fabergé e os seus ourives desenharam e construíram o primeiro ovo em 1885, para o czar Alexandre III, foi um presente de Páscoa para a czarina Maria Feodorovna. Por fora, parecia um ovo de ouro esmaltado, mas ao abri-lo, tinha uma gema de ouro com uma galinha dentro, que por sua vez continha um pingente de rubi e uma réplica em diamante da coroa imperial. Assim como uma matrioska, está ver...-explicou, entusiasmado, analisando a peça com uma lupa. Ela ficou tão impressionada que o czar passou a encomendar um ovo todos os anos, na condição de ser sempre original, e conter uma surpresa. Cinquenta ovos imperiais foram produzidos para os czares Alexandre III e Nicolau II, e outros membros da nobreza russa.

-E este é autêntico?

-Puríssimo, veja. Prata, ouro, platina, combinados em proporções variadas, a fim de produzirem diversas cores. Além de usar uma técnica de esmaltagem plique-à-jour,  assim como pedras preciosas. Só existem  cinquenta e sete, mas oito estão desaparecidos e desses só há  fotos de dois. Depois da revolução russa, a casa Fabergé foi nacionalizada pelos bolcheviques, os palácios saqueados e os tesouros removidos por ordem de Lenine. No tempo da guerra, Estaline vendeu vários, e pensa-se que catorze ovos deixaram a Rússia nessa altura. Uns terão sido comprados por Armand Hammer, um milionário americano que foi amigo pessoal de Lenine, e outros por Emanuel Snowman, um antiquário de Londres, mas não é seguro!

Contactada a Interpol e trocadas fotos, efectivamente confirmava-se a falta de oito ovos, o de Sintra poderia ser um deles. Mas, curiosamente, o FBI informava que o ficheiro de Armand Hammer  mencionava uma passagem por Portugal em 1942,e ficara alojado em Sintra, vigiado pela PIDE portuguesa, a inédita amizade com os russos aconselhava cuidados. Vasculhado de novo o baú, Caldeira detectou uma pequena inscrição em cirílico, na base. Mas como teria ido o ovo ali parar? O caseiro garantia que um mês antes não havia nada no local, só lá iam homens da imobiliária para mostrar o chalé, que estava à venda. O ovo, entretanto, ficava apreendido, a embaixada russa sabedora do achado arrogava direitos, mas o governo português alegava serem necessárias mais averiguações.

O inspector matutou vários dias no caso, e chamou o homem da imobiliária ao local, para saber quem tinham sido os interessados na aquisição da quinta:

-Vieram uns árabes, que gostaram, mas acharam pequeno, queriam salões maiores, o André Jordan, e…ah já esquecia, esteve cá o José Mourinho com uns barbudos -  Nuno Duarte, mediador da Relux, agência especializada em casas de gama alta, tinha a venda do  Biester a seu cargo -Para aí há um mês. Eram dois. Até pediram para meter o carro cá dentro, um Ferrari amarelo, lembro bem.

-E eles estiveram sempre consigo?

-Sim, sim…não, espere, houve um que pediu para usar a casa de banho, demorou um pouco, mas só isso.

-E mostraram interesse pela casa?

-Acharam  muito húmida, disse um deles ao Mourinho, mas tinham um amigo que gostava muito de Sintra e que viria daí a um mês a negócios em Portugal. Aliás, agora que fala, lembro que na agência marcaram uma visita para a semana. Um momento! -pegou no telemóvel e ligou para o escritório, confirmava-se. - Exacto! Sergei Borosov, vive em Londres habitualmente.

-Fazemos o seguinte: quando ele vier eu venho também, como se fosse da agência, ok?

Nuno encolheu os ombros, que fosse, o negócio dele era outro. No dia aprazado lá surgiram dois russos num carro de vidros foscos, com mini bar lá dentro, Nuno e o inspector mostraram os interiores, obra de Manini, o mesmo da Regaleira, e Borosov mostrou interesse, uma off-shore das ilhas Caimão compraria. O que guiava o carro pediu se podia ver a adega, e aí Caldeira aguçou os ouvidos. A adega estava vazia, os russos, desconfiados, entreolharam-se, perguntando pela garrafeira, um quanto alterados já. O telemóvel de Caldeira tocou entretanto, da central chegavam informações recentes:

-Sim…sim…óptimo! Obrigado, Sandra, hoje pago eu o almoço!

Terminada a chamada, segredou a Nuno que fechasse o portão discretamente, e dirigiu-se aos russos que discutiam na adega:

-Polícia Portuguesa! Estão presos, façam o favor de me acompanhar! -explicou em inglês, sacando a arma dum coldre atrás das calças. Os russos, surpreendidos, olharam um para o outro e ensaiaram uma fuga, um disparo para o ar arrefeceu as intenções, Nuno travara-lhes o carro com o dele, ao fechar o portão:

-Então, inspector, que descobriu? -o agente imobiliário exultava a brincar aos detectives.

-O russo que veio ver a casa com o Mourinho é neto dum agente do KGB, que nos anos quarenta entregou a Armand Hammer o ovo Fabergé que Estaline secretamente lhe vendeu. Por azar, ainda em vida, Hammer confidenciou-lhe ter escondido o ovo em Portugal, em local seguro, e identificou o sítio. O tipo que veio com o Mourinho tem dinheiro enfiado no Real Madrid, seguiu as indicações do avô, que lera o conteúdo da carta para Estaline, e descobriu o  ovo numa prateleira da adega, no local referido na carta de Hammer, só que não teve tempo de o levar quando pediu para usar a casa de banho, originaria suspeitas. Mandou então este amigo fazer a recolha, a coberto dum suposto interesse na compra do chalé. Daí só estar ali há poucos dias, pronto para levar.
Presos os ladrões, caso encerrado: o ovo foi entregue à Federação Russa, que o enviou para o Hermitage, onde ficou exposto. Agradecido, o governo de Medvedev prometeu um donativo para apoiar as associações culturais de Sintra, ocasião rara em que se podia pelo menos contar com um ovo....   

sábado, 29 de dezembro de 2012

Era uma vez na América


Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque decidida a procurar respostas para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, seu antepassado, senhor de Colares e acusado de heresia pelos Melo e Castro, aristocratas locais, tivera de fugir para Inglaterra, onde embarcara no Mayflower, em Plymouth, com destino a Cape Cod, Massachussets. Aí vivera cinco anos, até se mudar para Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque, onde montou um negócio de ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um diário pessoal onde misteriosamente escreveu na última página: "tudo o que deixo jaz na imaginação”.Depois da independência americana e avessos aos yankees, os descendentes de Antão voltaram a Portugal, trazendo o diário, o próspero negócio na Baixa de Lisboa devolveu aos Valadares respeito e poder, e a casa de Colares foi restituída.

Elisa, professora de Literatura, desde jovem se apaixonara pelo diário do antepassado, tirando um mês de licença, meteu-se a caminho da Big Apple, acrescentando ao prazer da viagem esse motivo especial. Não sabia o que procurar ou onde, mas o desafio era estimulante. Nova Iorque pareceu-lhe esmagadora e fervilhante. Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver o ambiente, o melting pot de tendências, a cidade que nunca dorme, como certeiramente cantara o O’l Blue Eyes Sinatra. De pescoço no ar, deambulou pelas ruas, formigueiro de pessoas correndo para qualquer lado, a Greenwich Village e ao Soho achou mais à sua escala, abocanhados pela expansão de Chinatown. À noite, festim de néons e luzes, fruiu os imperdíveis espectáculos, adorou Les Miserables, escutou jazz no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, sempre farejando um rodízio ou pizzaria, com surpresa descobriu um sítio na rua 46, onde devorou a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro, quarenta anos de América, caprichou na confecção.

O velho diário apontava para que a casa de Antão ficasse num ponto a norte da cidade actual. Nova Iorque mudara muito desde 1650, era agulha em palheiro. Lembrou a tarde no Cantinho da Várzea com o Damião Ramires, colega da faculdade, tentando entender uma planta antiga da cidade. Documentos da Biblioteca de Utrech, consultados no Google, ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser longe do rio Hudson, pois no diário Antão relatava que era uma hora até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island.

Já em Nova Iorque, teve uma ideia: a Biblioteca do Congresso, em Washington DC, o maior acervo do mundo, onde contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária e conhecedora de Pessoa. Três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade era dispersa, misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china quando se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Aí estava a resposta!

Munida de cópias, voltou à cidade e tentou situar a quadrícula desenhada, era a meio da cidade, depois do Lincoln Center. Sentada num banco no Central Park olhando um furtivo esquilo comendo bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, o que poderia subsistir ainda numa cidade com milhões de habitantes e com alterações abismais desde então. O verde silencioso do imenso parque contrastava com a feérica Quinta Avenida e o luxo de Park Avenue, trauteando The Sound of Silence, à memória vieram-lhe as imagens do mítico show de Simon e Garfunkel que ali tivera lugar anos antes. Era uma missão impossível, se a Rute do departamento de História Medieval soubesse, mandá-la-ia tratar-se, por certo.

Nessa noite, no Virgil’s, comeu umas baby ribs aceitáveis, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado morto há centenas de anos. Já terminando o jantar, um vulto, até ali silencioso, abordou-a, o ar perdido da portuguesa despertou-lhe curiosidade. Todd Galagher, apresentou-se, professor de História em Columbia. O relato de Elisa, expansiva com o inesperado mas simpático colega, efeito do branco seco, levou-o a oferecer-se para ajudar na busca. Morava em Queens, e no dia seguinte folgava, encontrar-se-iam no lobby do New Yorker.

Todd era um jovem assistente da universidade, adepto dos Nicks, escrevera já um livro sobre Thomas Jefferson. Munidos das plantas da Biblioteca do Congresso, subiram o Central Park. Para ele era improvável existir algo, a ela a localização bastava, não tinha ilusões sobre a casa. Detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado pela viúva de Lennon, Yoko Ono, a planta mandava virar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos onde Todd marcou o chão com o pé. Era ali o local onde pela planta teria existido a casa. Elisa comoveu-se, e disparou fotos para todo o lado, decifrara o diário de Antão, o judeu de Colares que um dia partira no Mayflower.

Ameaçava chover. Contente pela ajuda, Todd convidou para uma ceia no Walinski’s da rua 42, os melhores tacos da cidade, asseverou. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selou o convite, Antão Valadares ficava definitivamente enterrado no passado. A cinquenta metros, em pleno Central Park, um desenho circular na calçada assinalava o local onde há vinte anos Todd Chapman assassinara John Lennon. Em letras grandes, e ao centro, a inscrição IMAGINE. A “imaginação” do diário de Valadares. Elisa emocionou-se, e abraçou Todd com força.

Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo começaria em breve, três dias depois teria avião, com partida do JFK, os últimos dias foram de relaxe e paixão com Todd, o prémio da viagem, afinal. Antes da partida, combinaram um encontro nas Torres Gémeas, nada como o skyline de Nova Iorque para uma despedida da Big Apple. No último dia, já a caminho do World Trade Center, onde Todd aguardava desde as nove, um saco esquecido no New Yorker fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, uma T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar do hotel, sirenes de bombeiros e um fumo espesso e intenso vinham do lado do rio, a televisão no lobby anunciava um espectacular acidente com aviões chocando contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no último piso com um bouquet de gladíolos, essa manhã de Setembro foi de despedida.