domingo, 14 de outubro de 2012

A Geração de 70




Ver nos protestos de ontem, já enrugados, os trovadores da Geração de 70, que anunciaram a madrugada redentora e hoje retomam a rua para relembrar ao povo só ser derrotado quem desiste de lutar, remeteu-me para esse tempo-sépia de felicidade e orgasmo colectivo duma geração que sonhou e hoje se vê na premência de ter de travar novas ameaças.
Escutando-os, recordo emocionado aquela já longínqua quinta-feira de Abril em que não houve aulas, e o "ponto" de Física foi adiado por causa duns militares estacionados no Terreiro do Paço. O avô telefonou a aconselhar que não saíssemos de casa, chuviscava, em dia cinzento, a televisão, silenciada, passou um episódio do Daktari. Contente por não haver “ponto”, aproveitei e fui ao barbeiro, onde corriam boatos sobre o sucedido, um golpe de Estado, asseverava o Taborda.Aos catorze anos, ignorava o que fosse tal, mas um dia sem aulas era motivo de festa.
No dia seguinte, achei a escola agitada. Acossado, o porteiro do D. Pedro V fora preso, informador duma tal PIDE, anormalmente, o Miguel, neto do Marcelo Caetano, não apareceu, o avô viajara para a Madeira na véspera. No sábado seguinte, depois duma avalanche de acontecimentos, e debaixo de chuva miudinha, subi ao Carmo, onde soldados com cravos nas armas e pendurados em blindados tiravam fotos com os populares. Lisboa, cinzenta e molhada, exultava de alegria. Na estátua do Rossio, guedelhudos invectivavam os transeuntes, apelando à sua prisão, agentes da PIDE, denunciavam, levando à sua detenção por populares acirrados, um tal Saldanha Sanches, de megafone na mão, clamava contra os traidores fascistas.
Em poucos dias, tudo mudou. O “careca megalítico”, de História, até ali sempre sorumbático, mostrava-se simpático e adepto da nova situação, opositor silenciado durante anos, rejubilava, receoso, o professor de Moral, esse, temia a anarquia. Embriagado pelas notícias da liberdade que de todo o lado choviam, animado por canções de protesto nunca antes escutadas, aos quinze anos, feitos entretanto, descobri mundos escondidos, os sons do Zeca, do padre Fanhais, de Luís Cília e Adriano, na sala de alunos, manifestos policopiados e jornais de parede diariamente apelavam a RGA’s, onde se discutia tudo em acalorados plenários.
Num deles fui eleito secretário da mesa, ingénuo e analfabeto da coisa, mal sabendo o que fosse um ponto de ordem ou declaração de voto. Certo é que em prol dum ensino democrático e livre, nesse dia lá se decidiu uma manifestação, em sintonia com todos os liceus de Lisboa. O ministério, na 5 de Outubro, nunca presenciara tal folclore, rodeado nesses dias por Chaimites que nos faziam viver o épico da revolução de Outubro, sendo nós o genuíno braço da História.
Todo o liceu se reorganizou: os manuais foram revistos, retratos do poder deposto apeados, o reitor, prócere lacaio do regime, saneado. A 1 de Maio, dia do trabalhador, ainda eufóricos, subimos a Almirante Reis rumo ao estádio da FNAT. E Portugal estava todo ali, o país do fado em festa, marinheiros e soldados abraçados, o mundo acordando para este esquecido rincão que, desassombrado, e agigantando-se, despertava, fazendo a última revolução utópica dos tempos modernos.
Nas semanas seguintes, o país transfigurou-se, a escola entrou em ebulição, os partidos dividiram as opiniões, os plenários foram sendo organizados, a democracia gatinhou, vendo os jovens a tornarem-se homens. Nada poderia deter a força indómita da geração da liberdade, prometendo escola para todos, a servidão enterrada, e um futuro a despontar por culpa duma manhã de Abril, em que para gáudio da turma não houve “ponto” de Física.
Passada a embriaguez desses dias límpidos, entrei na universidade, licenciei-me, a Europa chegou, a televisão ganhou cor, viajei e corri mundo. Com orgulho, cúmplice daqueles dias irrepetíveis e já míticos, acreditei que para sempre haveria de viver num país livre, qualificado, progressivo, de baby boomers com vinte anos de atraso, mas a tempo ainda de apanhar o comboio. O futuro era azul cor de mar e verde melancia, só coisas boas poderiam vir, depois de anos de silêncio e mudanças bruscas. O país prometia, a Europa pagava, cantavam-se amanhãs  despreocupados.
Nos finais de setenta, Direito era um território maoísta, iconográficos, os retratos de Ribeiro Santos e Maximino de Sousa, heróis de escaramuças passadas, pontificavam no átrio da faculdade, onde durante as greves académicas se pregou a revolução em rádios piratas, e entre jingles gravados, se anunciaram as lutas dos estudantes, à moda do Pão com Manteiga,  lançando setas aos professores, achincalhando a obesidade da Magalhães Colaço ou as épicas tiradas do Soares Martinez. Sem graça, e num programa de rádio, meti-me inclusive uma vez com o professor Sousa Franco, crismando-o de inteligente, por tudo lhe entrar por um ouvido e jamais sair pelo outro, assim gozando com a sua deficiência na orelha. A Glorinha, agora procuradora em Aveiro, era a mais acirrada, quebrando a vitrina das pautas com um pé de cabra sempre que as notas desagradavam, duas vezes foi detida por vandalismo, com imediatos comunicados desmascarando a discricionaridade fascista, como sempre, estudantes unidos, jamais seriam vencidos. O Pedro, hoje deputado, depois da passagem por uma Câmara como vereador, era o mais irreverente, romântico aos vinte, calculista aos quarenta. Do grupo, só Rafael enveredou pelos jornais, investiga hoje a fuga ao fisco dum político, por sinal do partido de Pedro.
Foram tempos gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, oportunos e revolucionários “copos” no Bolero ou no Jamaica, para tudo acabar em olheiras no reconfortante Cacau da Ribeira. 
Portugal mudou muito, entretanto, e até há pouco só o Charneca, o eterno contínuo, continuava vendendo cópias de exames no átrio da faculdade, prova viva de que aquele passado existiu, afinal. Glorinha, a Pasionária do Campo Grande, com uma voz de arrepiar, era a líder, reunindo-nos em garagens a cantar os hits do momento, congeminando protestos, e dançando pegajosos ao som do Hotel California. Em 1979 o socialismo caminhava inexorável para a gaveta, e os avós da troika já cá estavam, mas era quente a luta ainda, e com garra. A utópica alegria de rasgar caminhos nos uniu, e, apesar de madura, essa recordação sobrevive ainda, na nostalgia de amigos de Alex, a contas hoje com a tensão ou a próstata.
Por esses dias corria-se Lisboa no Audi do pai do Heitor, o único com carro, chamando à luta ou a reuniões no Técnico ou em Letras, por sinal a mais bem servida de moças. Como irónico parece ser hoje o “exorbitante” preço das propinas, uns meros seiscentos escudos em selos, comparado com os dias de hoje, apesar do ruído em defesa da escola pública.
Coexistiam Zeca, Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens, onde após lânguidos slows se prometiam amores eternos, e o nirvana do Shangri-La socialista. Foi no velho Hot Club que apanhei as primeiras “cardinas”, chamando princesa a uma desdentada, que por vinte escudos prometia felicidade à porta do Fontória. A vida era marcada pelos bares: o Archote, o Whispers, o Bolero, mais tarde o Jamaica, o Bora-Bora e o Charlie Brown, mais burgueses o Ad Lib ou os Stones, atrevidos,  a Cova da Onça e o Pipodrom junto ao Coliseu, onde por uma moeda de vinte cinco escudos se espreitava pelo óculo  a Olga de Jurídicas, fazendo streaptease para pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram várias vezes, esbugalhando os olhos ante a visão celeste do corpo alvo da hoje ilustre advogada em Portimão.
Os anos passaram, a nosso modo respondemos à chamada do tempo, de sangue na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o mundo nos poderíamos salvar. Salvou-se a memória, o orgulho de ter tentado, a certeza de não ter desistido.
Deambulando pelos protestos que a cada dia engrossam as ruas e as redes sociais, observo os ingénuos actores das novas utopias. Para eles, para nós, se renova a chamada para a luta, em vigílias de esperança, combatendo o frio destes infaustos tempos. A presença dos veteranos é um sinal, a pronúncia da rua, o momento. Hoje, como ontem, atrás de tempo, tempo vem, e todo o tempo é, e será sempre, composto de mudança.

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