domingo, 7 de outubro de 2012

O aluno de Filosofia


Na arejada sala de aulas, bem perto da rive gauche, na luminosa Paris, o professor Sainceau deitava um olhar aos novos alunos, para o semestre de Filosofia Política. Quarenta anos de Sorbonne, soixant huitard arrependido e céptico convicto, depois de ter sido seguidor de Henry Levy e Castoriadis, desde meados de oitenta que convencido, porque vencido, se dedicava ao ensino em exclusivo, sempre com o cachimbo aromatizado, que lhe emprestava uma elegância sartriana de compagnon de route, perdido na década errada.
Os novos alunos eram quase todos estrangeiros: polacos, belgas, espanhóis, um ou outro mais entradote na idade, pessoas com tempo, e sobretudo vontade de questionar, no fundo, pensava ele, de falar mais que de ouvir, sempre assim fora nas suas aulas. Peripatéticos modernos em busca dum púlpito, buscando convencer os convencidos, e julgando tudo saber pela etérea confusão entre fé e fezada, razão e teimosia, empirismo e experiência. Uns chatos, no fundo, pensou, passando revista à turma com os olhos, e lançando sobre ela uma cachimbal baforada de desprezo.
-Bom dia, meus senhores, bem vindos. Eu sou o professor Sainceau, e desde já aviso que todas as mentiras que ouviram a meu respeito são provavelmente verdade!
A turma sorriu. Um dos novos alunos, já com alguns anos, virando-se para um colega, de Salamanca, anuiu:
-Grande tirada, e grande verdade. Já o experimentei na pele!
O espanhol sorriu, sem dar grande sequência à conversa, o novo aluno, grisalho, falava com sotaque, francês não era, aparentava um ar próspero, roupas de marca e telemóvel de última geração, segundo deu para apurar. Sainceau continuou, expondo os grandes temas do semestre:
-Primeiro, deambularemos em torno da epistemologia, do estudo do conhecimento, tentaremos responder às dúvidas com o que é e como alcançamos o conhecimento. Com a experiência, a verdade empírica ou a razão, cartesiana e fria…
-Comigo foi sempre com a experiência. Primeiro a experiência e em cima da experiência aplicamos a verdade adquirida!- sussurrou o aluno grisalho, com um ar de quem nunca teve dúvidas. -A razão decorre sempre da experiência individual. Daí que não haja razão, mas razões…
-Pareces já adiantado no curso, hombre!- rematou o colega ibérico, tirando notas, Sainceau continuou:- os filósofos antes de Sócrates buscavam explicar tudo através da razão e do conhecimento científico. Podemos citar, neste contexto Tales de Mileto, Anaximandro e Heráclito.
-Antes de Sócrates não sabiam nada, era a confusão! - comentou Janek, um polaco ruço de bigode enrolado.
-Grande verdade, amigo, grande verdade! -anuiu com a cabeça o grisalho, ante o silêncio do espanhol, um tal Angel Menendez, de Segóvia.
-Também abordaremos questões em torno da problemática da estética, lá para a frente….- continuou Sainceau.
-Aí não tenho problemas, sempre fui um homem de bom gosto e cultor do belo…-interrompeu o grisalho cada vez mais falador, do alto das suas roupas Armani e corte de cabelo apurado, a bem dizer, contrastava com o ar troglodita da maioria dos colegas, enxovalhados, e muito rive gauche.
Deitando um olhar enfadado ao aluno, o professor Sainceau começava a embirrar com o fala-barato, com o tempo a passar, despejou o essencial do programa para o semestre:
-Outra vertente do nosso curso será o conceito de ideal. O ideal, segundo Hegel, era uma tentativa de transpor a realidade dura e cruel da vida quotidiana e ao mesmo tempo projectar para si mesmo exemplos a serem seguidos. O ideal é algo espiritual, do plano da imaginação do sujeito, pouco interessando a realidade ou as suas representações…
-Acho que vou adorar estas aulas…- comentou de novo o quarentão, para um já familiarizado Angel.
-Por fim, abordaremos a lógica como conjunto de axiomas e regras que visam representar formalmente o raciocínio válido. A lógica, meus senhores, define a estrutura de declarações e argumentos, para elaborar fórmulas através das quais estes podem ser codificados, compreender o que gera um bom argumento, e quais os argumentos falaciosos.
-Ah, aqui sim, senhor professor, creio poder contribuir com a minha experiência para uma nova teorização da lógica- interrompeu o fala-barato, levantando-se e mirando a sala com um olhar triunfante.
-Sim?... Temos então aqui alguém com ausência de cepticismo, um endeusador do belo, pelo que observei, e um veterano de deduções lógicas… Como é mesmo o seu nome, monsieur?
-Sócrates!
A sala estarreceu, imaginando em vez da aula de filosofia do professor Sainceau, estar numa sessão espírita ou num programa de apanhados. O aluno grisalho, fixando os colegas como o fazia em reuniões para salas cheias num passado recente, apresentou-se, adversário do cepticismo, e epicurista, cultor dum particular tipo de belo:
-José Sócrates, de Portugal. Trabalhei para o governo português, até há pouco tempo….E, diferentemente do meu homónimo grego, que apenas sabia que nada sabia, eu sei que tudo sei. E também sei que os outros nada sabem! É um óptimo ponto de partida para estas aulas, não acha, professor Sainceau?- rematou o novo aluno, guardando um computador Magalhães numa pasta de pele e saindo para o Hotel George V, precedendo uma nada céptica jantarada no Boulevard des Italiens.



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