quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A sentença de L'Aquila e a caça às bruxas


A inusitada condenação de seis cientistas italianos por não anteciparem o terramoto de L’Aquila, há três anos, traz para o campo da discussão a questão da sindicabilidade das previsões científicas, como se vivêssemos em sociedades previsíveis e todos facilmente fossemos astrólogos ou adivinhos, dado o presumível avanço da ciência e da técnica.
Disse o tribunal, na sua polémica decisão, que ao não aconselharem a evacuação de uns milhares de residentes na região, os seis cientistas, sobretudo geólogos, terão cometido homicídio voluntário, sendo assim condenados como autores a seis anos de prisão. 
Chegados a este clima de caça às bruxas, num quadro em que se atribui um determinismo absoluto às decisões assentes em quadros científicos ou dados como adquiridos, porque não condenar então os políticos que fazem promessas e logo as contornam, gerindo de forma danosa a coisa pública? Porque não condenar os economistas que se enganam nas contas, mas mesmo assim não deixam de fazer da análise económica e das suas decisões um verdadeiro soundbyte, com reflexo no empobrecimento e locupletagem de inocentes vítimas dos seus lápis ou powerpoints predadores? Porque não condenar também por homicídio os políticos que ordenam guerras agressoras ou invasões ilegítimas, salvaguardados porém na imunidade que eles próprios se conferem, cautelosamente excluindo-se da acção penal, ou do risco de se sentarem em tribunais internacionais? 
A perigosa condenação de L’Aquila, na sanha de entregar culpados ás hordas desejosas de vingança, desclassifica a intencionalidade, a situação subjectiva dos agentes envolvidos, valorando meramente o resultado, e, ao ter actuado de forma iníqua, lança receios sobre a comunidade científica, resguardando-se de no futuro vir a ser assertiva nas suas tomadas de posição, agindo por excesso, porventura, anunciando tsunamis a seguir a pequenos sismos, ou histericamente fazendo dos alertas laranja a rotina dos institutos de meteorologia. 
Eliminar o risco é impossível, sobrevalorizá-lo é esquizofrénico. Onde esteve o procedimento sensato na prossecução da descoberta de um comportamento de “bonus pater família” do tribunal italiano? 
Haveria crime se houvesse um plano, intencionalidade no seu incumprimento, desvio da sequência das acções previstas, incapacidade de consecução do objectivo proposto, e causalidade. Além do mais terão ocorrido eventos adversos, e quanto muito, estaríamos perante erros, em que, por distracção, má aplicação de regras ou  má deliberação, se falhou. Se os erros resultaram de uma transgressão de regras tidas como recomendáveis ou seguras, não serão desculpáveis, pois poderiam ser evitados se as regras definidas tivessem sido seguidas. Contudo, podem ter sido meramente fruto da natureza humana. Importa não olvidar que por detrás de um acidente ou de uma complicação, pode estar um erro de percepção ou cognitivo, como um erro de diagnóstico, uma equívoca ausência de representação da realidade ou errada interpretação de dados laboratoriais. 
No plano jurídico-penal, a relevância do comportamento advém, justamente, da susceptibilidade de a conduta realizar um ou mais tipos de ilícito penal, na medida em que tal conduta fundamente a imputação objectiva de um resultado lesivo a essa conduta penalmente punível (na forma tentada ou consumada, dolosa ou negligente). Se os cientistas tiveram consciência de que iam cometer uma conduta indevida e mesmo assim se decidiram pela sua execução, estaremos ante uma violação consciente das leges artis, e em tal caso, perante uma violação deliberada, contrária às regras de arte, essencialmente dolosa. Mas se não tiveram tal consciência, devemos antes falar de erro, com ou sem violação do dever de cuidado, conforme o caso. 
A lição que fica deste processo, de autêntica caça às bruxas, é a de que face a uma ciência supostamente exacta, só um psicótico comportamento mecânico e determinista é hoje em dia infelizmente aceitável, e que, se formalmente vivemos em democracias, na ciência pouco menos aceitamos que certezas e posturas totalitárias e dogmáticas. Teias que um mundo de animais aflitos tece, esconjurando a mensagem e matando os mensageiros.

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