Bruxelas, Outubro de 2012. Apressado, o comissário
europeu Olli Rehn chegava ao seu
gabinete, onde, à semelhança dos últimos meses, choviam relatórios matinais
nada tranquilizadores sobre a evolução da conjuntura económica, sobretudo a da
zona euro. Ainda mal se sentara na secretária, já o grego Venizelos, do alto dos cento e vinte quilos, vociferava a partir de Atenas, o dinheiro não
chegava, a situação nas ruas estava difícil de conter. Malditos gregos, pensou
Rehn, enfadado, lamentando a hora em que aceitara o lugar na Comissão Barroso,
a início bem mais tranquilo. Despachado o grego troglodita, saiu a comer uma waffle perto do Grand Sablon, uns
minutos de relaxe antes de mais um Ecofin, o FEEF iria avançar, apesar da crise espanhola. Num canto da patisserie, ornada com gastronómicos tesouros de chantilly e chocolate, solitário, o ministro Gaspar,
pausadamente degustava uma tarte de maçã, pensativo e abúlico. Reconhecendo-o,
Rehn saudou-o, sem se levantar, mais tarde teriam tempo para os cumprimentos
da praxe. Terminado o repasto com um reconfortante cappuccino, aprestava-se a voltar ao gabinete, quando um grupo de
jovens, tatuados, e arvorando cartazes de protesto, se postou à porta da
patisserie, chegados de vários pontos
para a manif dos indignados, no
sábado seguinte e alertados para a presença no local do fleumático e plácido
finlandês.
-Abaixo a
globalização! Queremos um futuro!-gritavam alguns, em espanhol, secundados por tambores, que um
grupo da Galiza trouxera para o efeito. Polícia não havia por perto,
continuando metodicamente a comer, Vítor Gaspar enfiou uns phones e abstraiu da confusão, um pouco de Chopin repousar-lhe-ia o
espírito antes da reunião, com o país, de gente boa e resignada, ainda em choque com o anúncio do brutal
aumento de impostos
-Ó Gaspar, já viu
isto? São uns ingratos, estes tipos!...- arengou o comissário, vendo que teria de chamar a
segurança para voltar para o gabinete.
-Não ligue, senhor
comissário! Peça por favor com delicadeza, e eles deixam-no passar- sugeriu o
super educado ministro, pagando e limpando os lábios.
Com intervenção dos gendarmes, Rehn lá abalou, sem ter
sido reconhecido, Gaspar pegou na mala e seguiu para a reunião a pé, que
saudades dos tempos sossegados no BCE.
Regressado a Lisboa, o estado de choque pelo anúncio das
medidas para 2012 era generalizado. Um popular no aeroporto, reconhecendo-o
atirou-lhe um sonoro “ladrão”, a que respondeu com uma vénia cortês, nos
jornais, a oposição e os comentadores massacravam o governo. Desabafos, pensou o
ministro, tolerante, há sempre uns descontentes, gente boa, nada que uma fatia de tarte de
maçã não acalme.
Com o fim-de-semana à porta, brigadas de indignados,
reforçadas com piquetes de sindicalistas, promoveram manifestações à porta dos
ministros. Em Massamá, pior que Tripoli nos dias da guerra, um gang da Pedreira
dos Húngaros reteve em casa a esposa do PM, que tentou escapar invocando as
suas raízes africanas; Miguel Relvas, apanhado no Gambrinus pelos
Homens da Luta, foi emboscado numa mesa do canto, ainda engasgado com um rojão,
e sem bateria no telemóvel para chamar Miguel Macedo; à ministra Assunção
Cristas, um grupo de ceifeiras de Odemira amordaçou de supetão, à saída da
Zara, onde comprava um top em saldo, com o cartão do ministério. Descamisados ocuparam
o Ministério das Finanças, e por toda a parte carrinhas pick-up promoviam caça aos ministros e deputados. Com uma gabardina
velha à saída do metro das Picoas, o sisudo Paulo Macedo simulava pedir esmola,
com um chapéu enterrado até aos olhos, tentando passar despercebido à fúria das
ruas.
Melancólico, sorrindo, e cumprimentando com delicadeza os
amotinados em pleno Rossio, os melhores amotinados do mundo, Gaspar, sem ser reconhecido, parou para uma fatia
de bolo numa pastelaria de esquina, a um desempregado possesso sugeriu mesmo calma,
por causa da hipertensão. Com delicadeza, aumentara os impostos, cerimonioso e
educado, cortara apoios sociais, sem sombra de grosseria, castigara o governo
da Madeira, uma fatia de bolo e um chá de camomila, e aqueles senhores com
tensão alta voltariam a casa, e respeitosamente compreenderiam que dinheiro não
é tudo na vida, pelo menos nada que valesse uma tarte de maçã e um Chopin
reconfortante. A crise, pensava, saboreando uma garfada, é para ser tratada com
elevação e carinho pelo melhor povo do mundo…
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