domingo, 27 de agosto de 2023

Sangue atrás da palmeira

 


Realiza-se hoje em S. Tomé e Príncipe  a Cimeira da CPLP, organização que não se pauta hoje por ser um clube de democracias, com a Guiné Equatorial de Teodoro Obiang à cabeça, a Angola de João Lourenço ou o narcoestado da Guiné Bissau. Se há dias se criticaram os BRICS por quererem virar um clube mal frequentado dirigido pela China e pela Rússia (e agora com o Egito, a Arábia Saudita e o Irão, entre outros) há que ser assertivo sobre o que se pretende com esta organização, para lá de propalar a defesa da maltratada língua portuguesa e apostar na diplomacia económica, da qual Portugal não tira frutos, ficando com a retórica e outros com os negócio

A CPLP está em estado comatoso, e só o Brasil tem dimensão para, se quiser, dar novo alento à organização, se bem que o regressado Lula é agora o amigo de Putin e protocandidato a referência do Sul Global, seja este democrático ou não, deixando sérias dúvidas sobre o futuro ou utilidade destas cimeiras, cada vez mais apenas para cumprir calendário, tirar fotos com paisagens tropicais em fundo ou assistir a algum mergulho matinal do nosso omnipresidente Marcelo.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Não lhe deem mais Fortimel!

 

Quando vi esta imagem ontem na televisão ainda pensei: avisados pelas sirenes da chegada de Marcelo, os ucranianos fugiram de Kiev com medo de serem apanhados para alguma selfie. Mas não, por enquanto era falso alarme...
Marcelo é a nossa rainha de Inglaterra, mas bem gostaria de ser o nosso Winston Churchill, e já que constitucionalmente não pode aprovar uma paragem de autocarro ou a construção de um chafariz que seja, coleciona fotos, selfies, beijinhos, abraços e horas de declarações aos jornalistas. Creio mesmo que se pudesse teria um canal da Presidência onde qual Big Brother passaria o dia no confessionário, até porque sabe que nos próximos dois anos e meio ninguém o vai expulsar da casa.
O regime político português, sobretudo depois da revisão constitucional de 1982, gerou esta espécie de esquizofrenia: um Presidente e uma Assembleia ambos eleitos por sufrágio universal, mas onde depois as competências do primeiro esbarram em contingências legais, todo o poder real cabendo ao Governo, talvez por culpa de Eanes, que na altura saiu dos limites a que os partidos o queriam amarrar, exercendo o mandato na pulsão do semipresidencialismo mas pouco apreciado pelos grandes partidos.
Marcelo sabe isso, e não podendo demitir sequer um Galamba, vinga-se no Verbo e aí é estrela. Mas Marcelo cansa. Quando se fizer o balanço destes 10 anos, ficará para a História uma nota de rodapé, realçando a popularidade e a eloquência deste Presidente, mas incapaz por força das regras de qualquer reforma de fundo, ato histórico indelével ou postura destemida. É tudo espuma dos dias, comentários e discursos armadilhados, prazer e adrenalina com o jogo de sombras da política, conspirando pela palavra dita ou insinuada.
É claro que prefiro Marcelo a Cavaco, o figo seco de Boliqueime. Marcelo é um Presidente cosmopolita, bem preparado, com visão e até foi meu professor. Mas, com um raio, tem dias que cansa, nem o Goucha aparece tantas vezes. A culpa deve ser do Fortimel!

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Uma história na América



Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque decidida a procurar  resposta para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, um seu antepassado  com raízes em Colares, acusado de heresia, teve de fugir para Inglaterra, onde embarcou  no Mayflower com destino a Cape Cod. Aí viveu cinco anos, até se mudar para Nova  Amesterdão, onde montou negócio como ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um  diário onde escreveu: "tudo o que deixo jaz na imaginação”. Depois da independência  americana os descendentes de Antão voltaram a Portugal, o negócio na Baixa de Lisboa  prosperou e devolveu respeito e poder aos Valadares, bem como a casa de Colares. 

Elisa, professora universitária, desde jovem se interessara pelo diário, tirando um mês  de licença, meteu-se a caminho da Big Apple, em busca das respostas possíveis. Não  sabia o que procurar, nem onde, mas o desafio pareceu-lhe estimulante. 

Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver  o melting pot na cidade que nunca dorme, como certeiro cantara Sinatra. Deambulou  por Greenwich Village e pelo Soho, adorou ver Les Miserables, e escutou jazz no Blue  Note. Pior era a comida, deslavada, com surpresa descobriu um restaurante na rua 46,  onde comeu a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro, com  quarenta anos de América, caprichou na confecção. 

O diário apontava para que a casa de Antão ficasse a norte da cidade actual. Nova Iorque mudara muito, era agulha em palheiro. Documentos da Biblioteca de Utrech,  consultados no Google, ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser longe do rio  Hudson, pois no diário Antão relatava ser uma hora até ao porto, hoje Battery Park,  junto ao cais para Ellis Island. Na Biblioteca do Congresso, em Washington DC, contou  com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária conhecedora de Pessoa, e três dias  de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, lá descobriu uma planta de Nova  Amesterdão. A cidade primitiva era dispersa, misturando residências e lojas, uma  inscrição a tinta-da-china descoberta quando se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Munida de cópias, voltou à  cidade e tentou situar a quadrícula, era a meio da cidade, para lá do Lincoln Center. 

Sentada no Central Park olhando um esquilo a comer bolotas, deu consigo a pensar no  absurdo daquilo tudo, centenas de anos depois. 

Nessa noite, no Virgil’s, comeu umas baby ribs, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num  antepassado desconhecido. Já terminava o jantar, quando um jovem a abordou, o ar  perdido da portuguesa despertara-lhe curiosidade. Todd Galagher, era o seu nome, professor de História em Columbia, o relato de Elisa levou-o a oferecer-se para ajudar.  Morava em Queens, logo combinando encontro no lobby do New Yorker para o dia  seguinte. 

Munidos da planta da Biblioteca do Congresso, subiram o Central Park e detiveram-se  junto ao Dakota, o prédio habitado por Yoko Ono, a planta mandava virar para a direita,  na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns  arbustos, onde Todd marcou o chão com o pé. Pela planta, era ali o local da casa. Elisa  comoveu-se, e disparou fotos para todo o lado, enfim via decifrado o diário de Antão, o  judeu de Colares que um dia partira no Mayflower. 

Ameaçando chover, Todd convidou-a para cear no Walinski’s, os melhores tacos da  cidade, asseverou. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selou o convite. A  cinquenta metros, em pleno Central Park, um desenho circular na calçada assinalava o  local onde fora assassinado John Lennon. Em letras grandes, e ao centro, a inscrição “Imagine”. A “imaginação” do diário de Valadares. Elisa emocionou-se, e abraçou  Todd com força. 

Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo começaria em breve, e os últimos dias de  relaxe com Todd, o prémio da viagem, afinal. No dia da partida, combinaram um  encontro nas Torres Gémeas, para a despedida da Big Apple. Já a caminho do World  Trade Center, onde Todd a aguardava desde as oito e meia, um saco esquecido fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, a T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar a sair, um  fumo espesso e intenso cobria toda a cidade, no lobby do New Yorker a televisão  anunciava um espectacular acidente com aviões que teriam chocado contra as torres  gémeas. Também para Todd, esperando no topo com um bouquet de gladíolos, a manhã  seria de despedida. 

sábado, 19 de agosto de 2023

Minha maltratada língua portuguesa


É de bom tom referir que o português é a 5ª língua mais falada do mundo, a língua de Camões, Jorge Amado ou Pepetela, e em torno dela erigir uma comunidade política, a CPLP, tudo tendo como referencial o valor geoestratégico e político da nossa fala comum.
Porém, na presença de um qualquer estrangeiro, logo nos abaixamos a falar a língua deles, como se fosse vergonhoso o esforço destes para falarem a do país que visitam. Já dizia Eça de Queirós que é sinal de civilização falar-se uma língua estrangeira, mas patrioticamente mal, em sinal de respeito, mas não de submissão.
São os futebolistas que mesmo depois de alguns anos não se esforçam para falar o idioma do país onde trabalham, os jornalistas que mal vêm um qualquer espanhol logo buscam o seu melhor portunhol a armar ao cosmopolita, os novo-riquismos dos CEO'S, dos chairman's, das breaking news, do crossfire, e toda a parafernália linguística dita muito europeia e moderna, o economês e o informatiquês a substituir o vernáculo de séculos, isto depois de já o francês ter domesticado a partir do século XIX muito do linguajar autêntico moldado a partir do galaico-duriense medieval.
Dos acordos ortográficos vendilhões à comunicação social provinciana e reverente, breve chegaremos ao tempo em que o português será expresso por um conjunto de emojis tristes e de lágrima no olho, à beira da morte medicamente assistida.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Crónica de causas perdidas

Acho curiosas as pessoas que fazem tudo para aparecer e parecer terem vidas interessantes e inspiradoras, e depois, quando a nódoa lhes cai no pano, invetivam tudo e todos em defesa do seu direito à privacidade, vítimas de si próprias e da sua venialidade.

Vivemos um tempo de superficialidades, de vidas em modo reality show, esquecendo-se quem na discrição da sua existência contribui para um mundo melhor, se calhar em campos não tão cool ou sexy (perdoem duas palavras seguidas em inglês, mas é hoje a língua oficiosa de Portugal...).

 Percorrem-se as televisões, os Instagram narcisistas, o Tik Tok para idiotas ou o Twitter (agora X) do lunático Musk, e tudo nos é oferecido como felicidade, sucesso e triunfo, vendido como profundo o que não passa de show off, avidamente apelando às visualizações e aspirando ao momento glorioso em que uma banalidade qualquer se torne viral.

Neste mundo de gente debruçada sobre o telemóvel, um dia destes espantou-me um jovem no comboio lendo um livro, coisa tão rara hoje como encontrar um engraxador ou um amolador. De soslaio, espreitei a ver que obra o traria absorto naquele velho hábito da leitura. Era afinal o livro com as regras do Código da Estrada, a preparar o exame de condução...

Ler, refletir, discutir de forma aberta e positiva, é algo desaparecido no Parque Jurássico desta Humanidade estonteada, aprisionada pelas fake news tomadas como novas verdades, que um dia destes a inteligência artificial normalizará. Quando é que o bom senso se tornará viral?






quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A insustentável leveza do "post"

 




Vivemos na era do Me, Myself and I, do hedonismo egoísta e do Eu como centro de todas as coisas. De tal modo que todos temos uma página na rede social onde sobretudo explanamos estados de alma, fotos de nós próprios, partilha de vulgaridades, em que a envolvente apenas serve para destacar mais o quanto nos valorizamos nos mais diversos contextos, desde o apregoar a solidariedade com pessoas e causas, que devia ser simples e desinteressada, até destilar ódios, rancores, frustrações e silêncios que se gritam, como simplesmente desejar feliz aniversário, chingar o clube de futebol adversário, exibir o cão, o filho pequeno, ou o prato do marisco que se foi degustar à beira mar. Até o sexo já é virtual, dispensando o parceiro, seus odores e humores no after hours. Tudo sempre acompanhado de desabafos no confessionário digital, à espera de caridosos likes, veniais lols ou dum qualquer emoji repetido pela enésima vez.
O Homem narcista é pressionado pelo individualismo competitivo, ansioso, entediado, cínico e volátil, produzido para consumo imediato. O “eu primeiro” e a falta de percepção do outro em todas as relações, afetivas, profissionais, sociais e até sexuais, chega a extremos em alguns casos.
Errantes, somos zombies carregando telemóveis e tablets como armas no período das guerras, desejamos ser compreendidos, mas dispômo-nos a compreender cada vez menos, queremos ser ouvidos, mas ouvimos cada vez menos. Temos o motorista que quer passar à frente de todos, mas não deixa ninguém passar à sua frente e quando, inadvertidamente alguém entra à sua frente, é capaz de descer do carro para tirar satisfações, ou coisa pior. A mãe que pára em segunda fila, atrapalhando o trânsito, porque o filho não pode dar dois passos até ao carro, quando vai buscá-lo à escola. E quando alguém reclama por conta da tal infração, o errado é o outro, nunca ele. O filho vê essa cena, e acredita que isso é que é correcto.
Alguns professores são veementemente desrespeitados no exercício de sua atividade porque alguns alunos acham-se no direito de fazer o que bem entendem, o que lhe dá prazer naquele momento, independente de um mínimo de respeito às regras de convivência, e isso pode ir desde fumar na sala de aula, atender o telemóvel ou falar em voz alta como se só estivesse ele na sala, desrespeitar os professores e usar palavrões, o que reforça a sua liderança da tribo.
Todos os dias vemos nas manchetes de jornais o quanto o respeito ao próximo é aviltado e o quanto é mais importante TER do que SER. Vivencia-se uma distorção dos vínculos afetivos, a falta de limites e de parâmetros. Ouve-se e vive-se a falta de perspectiva ou de sentido no trabalho, na educação, na saúde, na vida.
Parece-me que essa falta de perspectiva decorre da convicção de esse caminho ser visto como a única alternativa, há que aproveitar hoje, pois não se sabe nada sobre o amanhã, e então que se tenha prazer hoje e agora! Para quê estudar, se não vai haver trabalho no futuro? Para quê dar o melhor de si num trabalho, se se pode ser mandado embora a qualquer momento?
Falta comprometimento, e isso é fruto da falta de perspectiva. Como buscar objectivos de longo prazo numa sociedade com valores e expectativas de curto prazo? Como manter relações duráveis se o que se busca é o imediatismo?
Este Admirável mundo global da Comunicação é afinal um esquizofrénico mundo de solidões gritadas para amigos virtuais que mais não são que electrodomésticos, onde a emoção, a demonstração da amizade ou a opinião são estereotipados e a massificação das emoções fá-las venais e rituais.
Homem, inútil compreender esse animal aflito!

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Luz e Trevas

 


Tenho um amigo que é arqueólogo de passados, não de pedras ou de batalhas, mas de almas, de vidas hoje hologramas, de silêncios que gritam em espaços abandonados, de felicidades interrompidas e de teias de aranha dominantes.

Vou chamar-lhe Corvo. O Corvo, como o de Edgar Allen Poe, sobrevoa as ruínas de felicidades passadas, e no silêncio das suas imagens sem texto traz História ao presente, não a História dos heróis e guerreiros, mas a das almas simples, perdidas em poderes efémeros, felicidades esquecidas, riquezas sem luz mas que alguém ou alguns um dia viveram. É um Historiador, esse meu Amigo, um filósofo da imagem, anónimo mas importante na arte de captar a essência dos dias, que foram de ontem mas serão de amanhã muitos deles.

O Corvo não está nas trevas, antes deambula atrás da Luz na falésia da incerteza, exorcizando almas num tempo sem cronologia, eremita no seu refúgio com cheiro a pinho, documentando novos poemas, cativo de emoções, mas jamais capturado. O Corvo é um pescador experiente, rodeado de palpitantes vultos holográficos, aflito entre os aflitos, é um vencedor da Caverna desafiante e escura, um fauno da noite, mas redentor intérprete da Fogueira seminal, nos seus silêncios e gritos dando conta da fogueira da Vida. 

O Corvo celebra a liturgia das Vidas, seja pelo diáfano som do silêncio, seja pelo grito da imagem bafejada pela Luz. O Corvo é grande. Solitário para uns, mas Mestre para outros.

domingo, 13 de agosto de 2023

Ratos na Noite

 


Em nome duma designada arte urbana ou expressão da liberdade, as nossas cidades, vilas e ruas pejam-se de paredes vandalizadas, não por qualquer expressão plástica (que também há) mas pelo mero prazer de deixar marca, de raiva, sobretudo, como o cão que escolhe a árvore para urinar, delimitando um território. Sem desprimor para alguns artistas que com a sua peculiar forma de expressão fazem eles também Cidade, sobram depois os writers de tags incompreensíveis e de mau gosto estético a comprovar que a polis que os não proíbe ou combate eficazmente está prisioneira destes predadores noturnos, ratos rebeldes sem causa que nos vêm lembrar a fragilidade da nossa segurança- quem grafita também pode roubar, a via aberta é a mesma- e como é inglório querer habitar cidades harmoniosas, limpas, de todos e para todos.

O fenómeno é generalizado, até em Espanha o constatei recentemente. Não há muro, parede, paragem de autocarro ou sinal de trânsito que escape, e mal um prédio é pintado ou arranjado, poucos dias depois lá está a assinatura dum qualquer Zorro atuando na calada da noite. Estaremos condenados a cidades sujas, ao património de cada um desrespeitado, e à cacofonia decadente do abandono e relaxe?

E não, não me venham falar em liberdade e inclusão, porque essa também existe, e dela há bons exemplos. É tudo laxismo das autoridades, indiferença da população e afirmação cobarde de quem não tem nada para dizer.


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Anatomia da Amizade



Será que ainda há amizades, ou não sobrará apenas a necessidade de ter pessoas em volta, rodeando imagens e não pessoas de carne e osso? Por vezes as coisas apenas parecem durar enquanto dura o tempo dumas rodadas ou enquanto não se parte para melhor, onde os vultos bons dos dias maus só lembram a existência desses dias maus, mesmo quando têm gente boa dentro, firme e leal.

Sou um lamecha com poucos amigos, mas esses poucos estimo-os(vos) como irmãos, nos dias bons e nos dias maus, até porque quando são bons celebrá-los-emos e abraçar-nos-emos como sobreviventes da Esperança. Sei que aquilo que para mim é amizade é mais do que  para outros, e não  resulta duma superficialidade automatizada, do tásse bem, de ser meros figurantes na espuma dos dias. Uns, ou porque casam e têm filhos, outros porque mudam de casa ou de emprego, não mais voltam a aparecer, apesar das promessas de lealdade e companheirismo sem nódoa, somem, assim, como se os anos de nada servissem e o velho amigo e cúmplice seja agora igual ao cliente do café que todos os dias à mesma hora lê o jornal e que já é familiar também.

Só o silêncio alberga os estados de alma. Envelhece o corpo, e se sempre procuro manter o espírito jovem e crédulo, tenho de admitir que assim já não é sempre. Começo a ver mal, eu que sempre me meti  com os “caixa de óculos”, e a não distinguir as letras do jornal. O álcool, antes libertador, é por vezes castigador e pesado, logo as farmácias substituirão os bares na busca de bálsamo para o corpo e anestesia para a alma.

Olho o mar, e qual filme a sépia, vejo o meu passado, refletindo como nos meus sessenta e quatro anos já vivi várias vidas, como um gato, todas diferentes, sempre nela entrando renovados personagens, histórias, amizades e por vezes, sem dar por isso, encerradas em capítulos estanques, até que outro capítulo se abra  e de novo tudo recomece, noutro tempo ou noutro espaço. E ingénuo, incauto, volto a dar o benefício à Vida, e esta a jogar às escondidas, com novas personagens e novas geografias e desafios. Nunca mais aprendo a não cair na ritual armadilha dos amigos para sempre, e a desacreditar de acreditar das pessoas, impondo a limpidez da verdade face à intermitência da farsa social.

Crescido nas festas de garagem e nas promessas de amanhãs cantando, tardio crente naquela amizade do tirar a camisa ou do largar tudo para acorrer aos “nossos”, vejo-me muitas vezes só entre a multidão. O mais perturbador é que até me sinto bem assim, couraçado, protegido de novas traições, ausente, mas presente para alguns, e esses alguns são muito poucos hoje, e são sobretudo alguns poucos cúmplices e irmãos. Os da minha geração saltitam para o médico ou para o centro de saúde, vencidos da vida e chatos, sombras nimbadas mas etéreas, arquivados no passado onde pertencem, património do meu baú. 

Em vós estimula-me a juventude, os sonhos, o poder ser  irmão mais velho, sem paternalismo, companheiro cota e protetor. 

Enfim, escrevo num momento catártico na noite de Sintra. Muitos são nomes na agenda que de ano para ano se repetem. Uns saíram já no apeadeiro do passado. Outros, estão presentes e com eles choro, e rio, dou-me por inteiro e quero-os vencedores e audazes, criadores e fraternos. Esses, são, como é óbvio, alguns apenas, e eles sabem quem são.