segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Milagre no 441



Segunda-feira, mais uma rotineira viagem do 441 das 7h 35m, de Fontanelas para Sintra, com os habituais cinco minutos de atraso. Logo em Fontanelas, entrou José Alexandre, funcionário da câmara, para mais um dia a ouvir reclamações, lendo o jornal e absorto da paisagem, sempre as mesmas pessoas entrando nas mesmas paragens, com os seus passes e pré-comprados. Era o primeiro passageiro, como sempre, o dia ainda a clarear. Nas Azenhas, três jovens ruidosos, a caminho da escola, a derrota do Sporting na véspera estimulava picardias, chingando em voz alta o treinador e os jogadores.
Na Praia das Maçãs, Susana, a prazo no Pingo Doce, entrou já atrasada, arrastando uma barriga de oito meses. Breve seria mãe, uma menina, babada, colocara a ecografia no Facebook. Com o companheiro desempregado, apenas o seu ordenado pagava as contas, morando com os pais dele na Tomadia, esse desordenado Cacém junto ao mar.
Quatro velhotas subiram em Colares, a tia Josefa, de preto, chorosa da morte recente do neto de cinco anos, atropelado no Carrascal vinha esbranquiçada e mecânica. O marido falecera há dois anos, agora o neto, carregava o solitário calvário, amenizado pelas idas a Sintra no 441, a buscar ração para os animais. Sozinha, dois gatos e um canário por companhia, a quinta das tabuletas não tardaria, pensava, validando o bilhete e sentando-se, apática.
O autocarro seguia atrasado, os vidros embaciados, um ventinho de nortada ameaçava  chuva, esquecera o chapéu, lembrou José Alexandre, um da loja chinesa colmataria por ora. O motorista, calado, burocraticamente antipático, mecanicamente cumpria o serviço, paragens com e sem passageiros, bilhetes e trocos, o irritante semáforo em Galamares, seis viagens diárias nos dois sentidos, os mesmos passageiros às mesmas horas, naquele dia, para variar, um japonês perguntando pelo Cabo da “Loca”. Subitamente, acelerou, deixando os passageiros a travar com os pés, para não serem cuspidos da inesperada montanha russa.
Na recta da Ponte Redonda, Susana até aí entretida a ler uma revista cor-de-rosa, sentiu um pequeno espasmo, agitando-se na cadeira. A tia Josefa, dando conta, meteu conversa:
-Está tudo bem, minha senhora? -sorriu, olhando-lhe a barriga proeminente -não tarda muito tem aí uma menina…
-Obrigado, não é nada, já passa. Como sabe que é uma menina? -interrogou, curiosa, endireitando-se no lugar.
-Na minha idade essas coisas não enganam….só eu foram cinco, no tempo da fome. Mas todos se criaram, graças a Deus!- um suspiro melancólico destapava uma vida de privações, e também de dever cumprido.
Já perto da Ribeira, os jovens, barulhentos, no alvoroço próprio dos quinze anos, quebravam a modorra, desafiando-se para jogos, debitando música os auriculares de várias cores. Susana fez um novo esgar de dor e contorceu-se na cadeira.-É agora! Ai Jesus, que é agora!
Prestável, a tia Josefa segurou-lhe na mão e sorriu premonitória:
-Chegou o momento….rebentaram-lhe as águas não foi? Ó senhor motorista pare aí o autocarro, que esta senhora está a ter a criança!
A notícia apanhou o carrancudo motorista de surpresa, que, surpreso, encostou o autocarro, já Susana se reclinara com dores na fila do meio. A tia Josefa e outra das velhotas fizeram um círculo em torno dela, com o xaile duma a fazer de almofada, para os passageiros aquela tornava-se uma viagem inusitada. José Alexandre abeirou-se, enquanto os miúdos, até ali agitados, emudeceram de repente. O motorista correu a pegar a caixa de primeiros socorros, tesoura e álcool teria, na retaguarda, impacientes, outros motoristas com pressa, apitavam e blasfemavam contra o condutor, mal estacionado e sem triângulo.
Aflita e transpirando, Susana arfava e fazia força, reclinada de acordo com as instruções da tia Josefa, providencial parteira na maternidade do 441.José Alexandre despejou a mochila e improvisou um berço para o rebento, mal visse a luz do dia. Três minutos depois, um choro, e um rosto ensanguentado fez a sua aparição, em clímax de felicidade, com as velhotas aliviadas, recordando as suas horas pequeninas muitos anos atrás. Num gesto compulsivo, todo o autocarro rebentou em palmas, com as velhas erguendo como troféu a mais recente passageira para Sintra, e sem bilhete, ironizou embevecido o motorista. Pelos telemóveis, os miúdos ligavam aos amigos, não iriam acreditar. Recomposta, e chorando de alegria, Susana agarrou as trezentas gramas de vida que não quiseram esperar por um hospital, e instintivamente, beijou a testa da tia Josefa, a quem uma lágrima correu pelo rosto. Apesar de velha, era útil ainda, só por isso a ração das galinhas seria reforçada, essa tarde.
Três meses depois, realizou-se o baptizado da pequena Sofia, e todos os passageiros e motorista daquele dia chuvoso foram convidados, testemunhas e cúmplices do milagre do 441.A tia Josefa perdera um neto, mas ganhou uma neta, a quem todos os dias, na volta do mercado, leva chupetas e toma conta, enquanto a mãe vai para o trabalho. Na rua, e no 441, gente absorta renova as diárias  rotinas, calando revoltas e gritando silêncios, acima e abaixo. Misteriosa, a vida, com e sem bilhete, renova-se, atrás da vida, muitas vidas há, e nela, atarantados e renovados passageiros.

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