sábado, 31 de março de 2012

Sintra do Passado ao Presente: um passeio pela memória

José Alfredo Costa Azevedo, o cronista de Sintra do século XX descreveu nas suas crónicas do Jornal de Sintra, depois reunidas em livro, a história da vila no dealbar da primeira metade do século XX. Uma das zonas por si em detalhe analisadas foi o então “novo” bairro da Estefânea, resultado da expansão urbana da Vila Velha com a chegada em 1873 do Larmanjat, o efémero “tramway” monocarril, primeiro, e do comboio depois, em 1887. Baptizado em homenagem à rainha D.Estefânea, a jovem e malograda esposa de D.Pedro V, esse bairro compreendia a zona “nova”, a partir dos Paços do Concelho (também eles recentes, inaugurados em 1909, construídos no local onde antes estava uma capela dedicada a S.Sebastião, demolida em 1904) e as actuais Av.Nunes Carvalho e Largo do Morais(embora a ligação à Portela e Lourel seja hoje quase contínua, detenhamo-nos nestes limites.

Numa viagem ao passado, com fotos de hoje, uma memória de locais onde se fez História, embora a Memória hoje nem sempre retenha.

Começamos pelo  edifício contíguo ao actual Gabinete de Apoio ao Munícipe.

Aí funcionou a Escola Oficial Conde Ferreira, homem rico que falecendo jovem e sem filhos deixou em testamento que se construíssem 120 escolas para ambos os sexos em vilas sede de concelho. Nesta escola exerceu durante muitos anos António Joaquim das Neves, conhecido pelos antigos como Mestre Neves e que foi tio do antigo Presidente do Concelho Marcelo Caetano, e depois regente de português na Escola Primária Superior, que existiu em Sintra, na escola do Morais entre 1919 e 1925. Este mestre Neves foi igualmente avô do jornalista e antifascista Mário Neves.

Ao longo da actual R.Alfredo Costa (médico, o mesmo da maternidade em Lisboa), alguns edifícios de nota.

Logo à esquerda, a antiga estalagem da Raposa e actual sede do Espaço Llansol, por aí ter também vivido durante alguns anos essa escritora nossa contemporânea.

Este edifício foi propriedade do abastado proprietário José Antunes dos Santos, que aí viveu e morreu, e aí viveu também o Dr. Álvaro Vasconcelos, presidente da Câmara entre 1930 e 1938 (foto abaixo)e muitos anos conservador do Registo Predial de Sintra e presidente nos anos 40 e 50 da União Nacional.

No nº 9, foi a tesouraria das Finanças, e um clube com jogo clandestino no tempo da monarquia, e aí teve escritório o advogado Porfírio de Sousa Martins.

Na cave do prédio com entrada pelo nº28 existiu o Clube dos 40, fundado em 1928, que mais tarde se mudou para o local da actual Pensão Nova Sintra.

Neste pátio foi igualmente a estação do Larmanjat, o efémero monocarril que Saldanha entendeu introduzir em Portugal depois de o ver em funcionamento em França.

No nº30 existiu uma vivenda, já demolida, chamada Casa das Magnólias onde viveu o republicano e governador civil de Lisboa depois da República Eusébio Leão.

No r/c dos nº 38 e 39, a actual Casa dos Frangos, muitos anos passou o Verão João de Deus, o autor da “Cartilha Maternal”. No 1º andar funcionou a Loja Maçónica Luz do Sol, de que foi Venerável o médico Gregório de Almeida, de que fizeram parte José Bento Costa, Nunes Claro, Virgílio Horta e o próprio José Alfredo, com o nome de “António Oliveira”.
Dr. Gregório de Almeida

 O chalé avermelhado do lado oposto da rua foi propriedade do comandante Fernando Branco, um dos criadores da esquadrilha de submersíveis portugueses e ministro dos Estrangeiros e da Marinha, e avô do presidente Jorge Sampaio. Também o pai deste, o médico Arnaldo Sampaio aí residiu, mantendo-se a casa na esfera da família.


No prédio verde onde durante anos funcionou o Departamento de Urbanismo e as Varas Mistas do Tribunal de Sintra, agora de novo um serviço camarário, morou há muitos anos Carlos dos Santos Silva, um dos fundadores do Banco Fonsecas, Santos e Viana, mais tarde Banco Fonsecas e Burnay.

No prédio com o nº 43, viveu no período de Verão o general Correia Barreto, primeiro ministro da Guerra depois da República e que aqui faleceu em 15 de Agosto de 1939.Em 1900 inventou a pólvora sem fumo.

Aqui foi homenageado pela Banda da Sociedade União Sintrense, depois de os revoltosos monárquicos de Monsanto terem sido repelidos, e ovacionado pelos populares.

No 53 viveu a Ti Gertrudes, ou a “Bonecreira”, a parteira da terra, que durante anos ajudou a vir ao mundo centenas de crianças em Sintra.


De seguida passamos ao Largo D.Manuel, anteriormente chamado R.Vasco da Gama. As pérgolas e arranjo urbanístico do local são do tempo do capitão Craveiro Lopes, presidente da Comissão Administrativa depois do 28 de Maio e mais tarde Presidente da República, sendo vereador responsável o capitão Mário Alberto Soares Pimentel, então presidente da Comissão Municipal de Iniciativa e Turismo.

Antes destas obras, haviam aqui uns barracões onde a CP fazia a recolha das carruagens.

À esquerda fica a Correnteza, antes Av. Barão de Almeida Santos, grande amigo de Sintra. Na rua paralela, R.Francisco Gomes de Amorim, viveu este escritor, no nº3. A rua tem o seu nome desde 1899.

No nº5 nasceu o escritor sintrense Francisco Costa em 12 de Agosto de 1900. 


Ao fim da rua, actual acesso à Biblioteca Municipal, ficava a casa que a viúva Mantero adquiriu a um tal Peixoto, proprietário do nº15, depois da trágica morte dum filho deste num acidente de viação na Volta do Duche.

Toda esta fiada de casas teve inicio com a construção do Larmanjat, para alojar os engenheiros que vieram trabalhar na linha, pois a viagem até Lisboa nesse tempo não permitia deslocações diárias como hoje.

Uma curiosidade: foi por influência de Tomé de Barros Queirós, o homem que proclamou a República em Sintra, e tinha uma casa na rua com o seu nome desde 1926, que a partir de 1913 se iniciou o arranjo urbanístico deste jardim.

E curiosamente, os candeeiros hoje ainda aí existentes vieram da sua loja em Lisboa, conforme se pode verificar a uma aproximação atenta.

Contornando a Correnteza para a R.Câmara Pestana chegamos ao Centro Cultural Olga de Cadaval. Nos anos 30 funcionou aí o Sintra-Cinema  

Só em 1948 foi inaugurado o Cineteatro Carlos Manuel, projecto do arquitecto Norte Júnior mandado construir por António Marques de Sousa.
Onde fica o Centro de Arte Moderna foi muitos anos o Casino, de Norte Júnior também e mandado construir por Adriano Júlio Coelho. 

Funcionou nos anos 20 com récitas e espectáculos, entre eles os do Orpheon de Sintra, e foi adquirido pela Câmara nos anos 50, tendo depois lá funcionado a Escola D.Fernando II e as Finanças. Em 1997 abriu como Centro de Arte Moderna, albergando alguns anos a Colecção Berardo, e agora sub-utilizado. O Orpheon de Sintra funcionou até 1927 e chegou a ter duzentos elementos.Uma imagem de 1927:
Tornejando para a Av. Heliodoro Salgado (deixaremos outras artérias para outra ocasião), algumas notas soltas, entre a cacofonia existente pouco digna dum burgo como Sintra.
Esta artéria, hoje pedonal, chamava-se anteriormente D.Maria Pia, no tempo da monarquia, e tem hoje  o nome dum maçon e jornalista que nada tem a ver directamente com Sintra, mas com o fervor republicano de alguns dos dirigentes da época. Anteriormente era mais estreita, e parcialmente ajardinada do lado esquerdo na direcção do Largo Afonso de Albuquerque.
A 1 de Maio de 1974 assistiu à maior manifestação que até hoje teve lugar em Sintra.
Em frente do supermercado houve em tempos um varão de ferro onde os saloios amarravam os burros quando vinham às compras.

Onde fica a pastelaria Tirol( inaugurada em 1950) funcionou uma carpintaria, de um Raio, da Várzea de Sintra.

Atrás do prédio onde ficava o Jornal de Sintra existiam terras e terrenos de cultura, tudo conhecido como o Casal dos Cosmes. No prédio de gaveto, existiu um hotel com o nome de Europa. 


Na zona destes prédios hoje em recuperação, existiu antes de 1931 um estabelecimento de recuperação de bicicletas, propriedade de António Augusto de Carvalho,(foto abaixo) vencedor da I Volta a Portugal em Bicicleta, em 1927.

Descendo na direcção da Av. Miguel Bombarda, antes José Luciano de Castro, temos o Café Elite, inaugurado em 14 de Outubro de 1937, e onde se realizaram muitos saraus com o Estefânea Jazz, (foto abaixo) grupo criado em 1930 por Martins de Oliveira (quem diria…).

A estação dos caminhos de ferro sofreu inúmeras alterações no tempo de Adriano Júlio Coelho (o do Casino). O primeiro comboio eléctrico chegou a Sintra em 29 de Novembro de 1956.
Em frente da estação fica o Café Cynthia, que anteriormente se chamou Bijou.

 A praça de táxis, ontem e hoje.
Onde fica hoje o parqueamento frente à estação, esteve previsto o Hospital de Sintra, projecto de Pardal Monteiro(abaixo)

O Presidente da República da época, Teixeira Gomes, chegou a vir a Sintra lançar a primeira pedra. Mas como outras obras, nunca saiu do papel...
Descendo para os Paços do Concelho, na primeira casa morou o arqueólogo Félix Alves Pereira.

E um pouco mais à frente, onde hoje fica o Café Saudade, foi a fábrica de queijadas da Mathilde, fundada em 1850. Depois de encerrada, ali funcionou um escritório de advogado, a papelaria ABC e uma agência de viagens.

Finalmente, onde fica hoje o restaurante Apeadeiro, inaugurado em Setembro de 1970, foi a tipografia Minerva Comercial Sintrense, de João Roberto Rosado, que em 1966 se transferiu para a R.João de Deus.

Pouco alterada pelo tempo, mas para pior, Sintra não tem sabido estar à altura dos seus antepassados. Produto dum casuísmo urbanístico, deixando degradar casas com História, aqui se deixa este “relambório” para que, pelo menos, muitos de nós ao passar na sua rotina diária por estas pedras e paredes silenciosas se lembrem que também aqui se fez Sintra, infelizmente quase sem memória para os seus habitantes de hoje.Talvez só a sombra de José Alfredo contemple a sua vila e suspire, contendo a vontade de como em 1934 voltar a tocar a rebate os sinos da igreja da Torre da Vila contra os atentados já então anunciados. Josés Alfredos, precisam-se!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Eu, prego, me confesso

Diz o primeiro ministro que a quem anda com um martelo na mão, tudo parece um prego. Fala certeiro do seu governo martelado pela troika, pois crucificados já estamos com pregos, cavilhas e brocas que sem dor e sem pudor nos tem cravado.
Com o martelo dos impostos, da supressão de direitos e da dignidade se vai pregando a cruz sem ressurreição. Mas se para uns é o prego sem compaixão, para outros é o mero alfinete, numa clara demonstração de que há marteladas e pancadinhas, e sobretudo que para muitos não há outro futuro senão meter tudo no prego. É esta a Carpintaria Portugal. Portugal a martelo.E a esperança, foi-se?

sábado, 24 de março de 2012

Teatro em Galamares nos anos 20

                                        
            Guilherme Oram,fundador do teatro de Galamares
 
Existe em Galamares um cine-teatro datado do princípio do século, onde durante anos, mercê da generosidade do visconde de Monserrate se realizaram récitas musicais, teatro amador, cinema, etc, num espaço romântico de fim de século, com balcão e plateia, decorado com pinturas murais e baixos relevos.
O restauro deste espaço é importante. Trata-se do único espaço público de Galamares, ali tocou Viana da Mota em 1923,e se fez teatro desde 1920.
Sobre o mesmo teatro e sua actividade, escrevia o “Ecco Artístico” em Dezembro de 1924:
 “Todos os que frequentam a pitoresca villa de Cintra conhecem o verdejante logarejo de Gallamares, na estrada nova de Collares.Situado entre quintas e prados floridos, a sua disposição é lindíssima, apresentando toda esta região um aspecto rústico e cheio de frescura, que caracteriza o nosso campo.
Pois n’esta pequenina aldeia,semi escondida entre arvoredos, existe um theatro há pouco construído,digno de ser anotado nas colunas do Ecco(….).A ideia da construção do theatro data de 1916.O Sr Guilherme Oram, intelligente administrador das propriedades do Visconde de Monserrate é a alma d’esta iniciativa artística. Grande amante de tudo o que se relacione com o theatro, já há muitos annos que nas épocas das ferias da escola de Monserrate organisava recitas no salão d’essa escola, recitas em que se representavam comedias mais ou menos applaudidas. D’essas noites bem passadas veio a verdadeira origem da construcção d’um pequeno theatro  onde se podessem entreter as principaes famílias d’aquelles sítios,aliando-lhe o sympatico fim de tirar os operários das vias do jogo e da taberna, por isso que lhes proporcionava um passatempo agradável, pois Guilherme Oram pensou e pensa em organizar um orpheon para aquella gente humilde e trabalhadora poder cantar os cânticos das nossas províncias, as quadras nascidas na alma triste e romântica do nosso povo.
O theatro em pouco tempo appareceu, tendo trabalhado n’elle com raro denodo os operários de Monserrate, sob a direcção de Guilherme Oram.Antonio Graça, mestre dos pintores da casa Monserrate,pintou os panneaux da salla e o panno de boca. Infelizmente, este artista morreu pouco tempo depois da inauguração do theatro. Os restantes scenarios teem sido pintados por Júlio Fonseca e Garibaldi Martins, que teem demonstrado muita habilidade e fino gosto.
O sr.Oram com o seu ideal artístico assim realizado, tem organizado recitas muito interessantes, e já neste theatro deu um recital de piano o pianista Vianna da Motta.
O verão passado fomos pela primeira vez ao theatro Monserrate, em uma noite em que se representou uma revista em 2 actos e 3 quadros, intitulada Sem pés nem cabeça, crítica engraçada aos costumes e pessoas conhecidas de Cintra, original de José Teixeira. Este novel escriptor soube produzir uma revista cheia de ditos engraçados e de profunda crítica, sem nunca usar d’um termo picante, obsceno, caso raro entre nós!
Todos os amadores representaram com distinção, tendo havido números muito bem cantados; no entanto, devemos destacar D.Lily Pereira Teixeira, D.Delfina Domingues, D.Umbelina Silva, D. Amália Cardoso, José Teixeira, Francisco Cardoso e Urbano James.
                                            José Teixeira
                                      Lily Pereira Teixeira
                                  Maria do Carmo Fructuoso
Os compéres foram Guilherme Oram e Eduardo Fructuoso,que mais pareciam artistas feitos do que simples amadores.
A sra D.Maria do Carmo Cunha Fructuoso acompanhou no piano todos os trechos da revista, com a maxima correcção.
Do guarda roupa,que era luxuoso,encarregou-se a Exma Sra D.Maria Oram.
                                         Umbelina Silva
                                           Urbano James
                                          Amália Cardoso 

O theatro,que tinha uma enchente,representada pelas principaes famílias que estavam em Cintra,em Collares e na Praia,applaudiram com enthusiasmo, havendo muitas chamadas especiaes aos principaes interpretes, aos srs Oram e José Teixeira.
Para este inverno e futuro verão já se preparam outras recitas”
                     
                          O teatro, hoje,quase recuperado