segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Homicídio na Assembleia da República



 A funcionária da limpeza pasmava, no hemiciclo da Assembleia, nem oito da noite eram, e um indivíduo, deputado por certo, dormia com a cabeça sobre a bancada, como não haveriam as pessoas de ter má opinião dos deputados. Preparava-se Olívia e a sua esfregona para lavar o local onde muito se lava roupa suja, quando aquele vulto com óculos de massa lhe surgiu no areópago do povo. Hesitando em acordá-lo, aproximou-se, era na bancada do Partido da Liberdade, o computador estava aberto na página do Facebook, e uma mensagem dum tal Libertador rezava “Já pagaste pelos teus actos. Lol” Visto mais de perto, o deputado parecia branco como a cal da parede, já ninguém restava no hemiciclo, a sessão sobre os novos impostos terminara pelas sete horas. A medo, tentou acordá-lo, ao que o corpo sem acordo do representante da Nação, a um toque, tombou no chão. Uma mancha de sangue brotando da camisa branca deixava à vista o horroroso cenário: o deputado estava morto!
Sirenes de ambulância e piquetes das televisões acorreram, mal se espalhou o sucedido. Crime na Assembleia, relatavam uns, ajuste de contas, aventavam outros, Hélder Carneiro, deputado por Faro, estava ligado ao sector imobiliário, um condomínio de luxo em Vilamoura antes de ser candidato originara querelas entre sócios, um dos quais ele. E o Libertador? Quem seria a enigmática figura?
O inspector Tomás, dos Homicídios, tomou conta da ocorrência. Autopsiado, a morte foi atribuída a um tiro de pistola com silenciador, em cheio no coração, a ultima pessoa a ver Carneiro vivo fora Vasco Trigoso, do Partido dos Valores, adversário político mas correligionário da caça, dias antes tinham estado em Vinhais, numa batida ao javali. Nada fazia supor tal tragédia: deixava mulher e um filho, na assembleia apenas se levantara uma vez para votar o Orçamento. Sempre que reunia o plenário, jogava Farmville, apenas interrompendo para aplaudir ou rematar com um “muito bem!” as intervenções dos colegas. Um pormenor chamou a atenção ao inspector: sobre a mesa, um papel, onde estava desenhado um flamingo, a morte tê-lo-ia surpreendido quando faltava desenhar uma pata.
Nada fazia sentido. Na televisão, circunspectos, o Primeiro-Ministro e vários deputados recordavam o insigne cidadão e o muito que havia a esperar de tão loquaz parlamentar. Nenhuma pista parecia esclarecer o móbil: não tinha inimigos declarados, a família era equilibrada, politicamente pardacento, dele nunca se ouviria falar, não fora a infausta morte no seio da representação nacional. No dia do funeral, muito concorrido, discretamente, o inspector Tomás observou os presentes: gente do Algarve, deputados de todos os partidos, e muito povo, sempre pronto a comparecer quando a televisão está por perto. Formado o cortejo fúnebre, uma carrinha branca com três homens dentro incorporou-se, eram dum tal Hotel Flamingo, em Vilamoura, um animal semelhante ao do papel encontrado junto ao corpo do deputado estava pintado na porta a azul.
Curioso, Tomás não mais a largou. Depois do funeral, seguiu a carrinha, que parou no Gambrinus, onde os dois ocupantes jantaram, falando baixo e num tom zangado, viu pelo esbracejar dum deles. Com o telemóvel, tirou umas fotos e mandou averiguar as identidades, todos aparentavam mais de quarenta anos, um usava um laço preto, como se fosse um maestro. Dali seguiram para um hotel, onde outro homem os aguardava no lobby, detendo-se a conversar um pouco e subindo para os quartos depois. Mal se retiraram, Tomás ligou a Eduardo, seu colaborador na PJ, que chegou em dez minutos e, identificando-se, pediu os nomes dos três. Eram os donos do hotel, informou acabrunhado o recepcionista. Daquele e de muitos outros, o Flamingo de Vilamoura também. Havia gato ali, mas por enquanto nada havia de concreto.
Colhidas informações na Assembleia, Tomás ficou a saber que o discreto Carneiro integrava a comissão de inquérito ao BPN, como vogal, Felício Borges, correligionário de bancada, lembrava-se de o ter ouvido certa vez ao telefone a falar com um tal Loureiro, e a garantir que ou viria um flamingo ou seria pior para ele. Requisitado o historial de chamadas, efectivamente havia entre os contactos um tal Abel Loureiro, a residir em S.Tomé desde o Natal. Perspicaz, teve uma ideia: adicionou sob nome falso o Libertador no Facebook e escreveu, sob o pseudónimo Albatroz: “Libertador, tenho o Flamingo comigo”. Do outro lado, ao fim de uns minutos, alguém entrou no chat:Quem és tu, Albatroz?”, a que se seguiu “O dono do milho. O pobre do Milhafre ficou pelo caminho mas o voo do Albatroz há-de prosseguir…”. Continuando a dar conversa, o Libertador perguntou: “E onde é o poleiro do Albatroz?”. Aí, Tomás lançou o isco: “Na casa do Flamingo, para uma bebida. Às cinco.”
Às cinco da tarde, no bar do Hotel Flamingo, Tomás, de fato e gravata, simulando ser um empresário de hotelaria, aguardava com um gin tonic. Minutos depois, um homem, que reconheceu do hotel, e do funeral, apareceu. Desconfiado, cumprimentou, e mandou vir uma garrafa de whisky e cajus. Era Macário Teles, industrial hoteleiro. O inspector Tomás inventou uma narrativa: queria investir no Algarve, e o grupo do Flamingo pareceu-lhe de referência. O nome da cadeia fora-lhe sugerido pelo deputado Carneiro, que grande perda fora para o país. A invocação do nome do falecido deixou o Teles desconfiado, e a tirar nabos da púcara:
-Conhecia o deputado Carneiro, senhor….
-Almeida. Almeida da Câmara. Sim, era amigo da família e tivemos negócios no passado. Grande fatalidade! Quem terá cometido um crime tão hediondo? E no sítio que foi…
-Pois é, ainda custa a crer. Ele foi meu sócio há uns anos, em Armação de Pêra, nuns prédios de apartamentos, depois meteu-se na política e só acompanhei de longe...
O telefone de Tomás tocou nesse instante, era o Eduardo, da sede, com informações frescas. Sorrindo, Tomás foi dando goles no gin, enquanto Teles fumava um charuto. Terminado o telefonema, e mais incisivo, Tomás voltou à conversa com o seu interlocutor, desta feita mais directamente:
-Diga-me, os senhores não fizeram esses apartamentos com dinheiro oriundo do tráfico de droga? E quando a sociedade se desfez, ele não lhe ficou a dever dinheiro?
O outro ruboresceu, e antes que dissesse algo, Tomás sacou da pistola e identificou-se:
-Tomás de Oliveira. PJ!
Sem reacção o outro deixou-se estar, retorquindo com alguma calma aparente:
-Não sei do que fala, inspector. Não via o Carneiro há anos, e se quer saber, até dei dinheiro para a campanha dele por Faro, através do partido. Quanto ao resto, são especulações, quero um advogado, se não se importa.
Tomás chamou a brigada, levando Macário para a PJ. Somados dois e dois, chamadas telefónicas comprovavam um conluio entre Teles e Loureiro, a partir de S.Tomé, para se verem livre de Carneiro. Aproveitando-se do novo posto, este chantajeara Macário com uma queixa por fuga ao fisco, com documentos que revelavam negociatas nos anos oitenta, e das quais não recebera a sua parte. Na comissão do BPN, implicaria Loureiro, todo o projecto do Flamingo fora financiado pelo banco, com dinheiro duma off-shore em Gibraltar. Ao meter-se com quem não devia, pagava com a vida, o autor material fora um pistoleiro contratado, um brasileiro, disfarçado de empregado da limpeza, que o alvejou, já só ele restava no hemiciclo. Acabou sendo preso no Meco, enquanto tomava uma caipirinha. Era Teles o Libertador.
Presos os responsáveis, Tomás, regressando ao local do crime, a dar conta das conclusões, viu no lugar do defunto o novo deputado que o substituíra: Porfírio Lopes, antigo negociante de carnes, ali para dar o corpo pelo partido, e se possível, por algum bife do lombo… Info-excluído, não sabia usar o computador, nem tinha amigos no Facebook. Ainda.

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