terça-feira, 9 de outubro de 2012

A desleal arte de subtrair




Nenhum aluno de Direito desconhece o alcance do brocado latino “pacta sunt servanda”, que significa "os pactos devem ser respeitados" ou  "os acordos devem ser cumpridos". Princípio basilar do Direito Civil e do Direito Internacional, no seu sentido mais comum, este princípio pacta sunt servanda enfatiza que as cláusulas e pactos ali contidos são um direito entre as partes, e o não-cumprimento das respectivas obrigações implica a quebra do que foi pactuado. Esse princípio geral, que implica o desrespeito pela boa-fé, é um requisito para a eficácia de todo o sistema.
Nos dias que correm, invocam os governos, em termos políticos, a prossecução de tal princípio quando têm de explicar aos seus governados a necessidade de cumprir acordos internacionais, como o memorando da troika, a transposição de directivas comunitárias, ou a adopção de tratados livremente subscritos, sendo no jargão político português apresentado como uma inevitabilidade messiânica, e quase um ponto de honra.
Pena é que só em certos planos tal necessidade de Direito (a que por vezes por eufemismo se acrescenta a obrigação moral de “honrar” a palavra dada) seja invocada, esquecendo, por exemplo, o igualmente sagrado pacto assumido pelo Estado com os seus servidores, que, precedendo concurso, com ele celebraram contratos sinalagmáticos pelos quais foram acordadas 14 mensalidades de vencimento, e todo um quadro de normativos que unilateralmente agora se quer duma penada suprimir, ficando a honra aqui bastante mais mitigada, e os deveres aligeirados, convenhamos…
Pena é que apesar de haver mecanismos jurídicos que permitem a revisão contratual por alteração de circunstâncias, tal se venha a aplicar apenas às relações laborais, em que o trabalho prestado é constante e não desvalorizado, mas já não pode ser aplicável a outros negócios do Estado, como as parcerias público-privadas, por exemplo, em situações onde os acordos tiveram por base previsões erradas e negligentes dos serviços e obrigações a prestar, e, portanto, tendo por base uma realidade volátil mas, para quem hoje está no poder, mais sagrada que a estabilização da relação de trabalho, que é a base do contrato social, na perspectiva da valorização do emprego como um valor e  bem da comunidade.
Pena é que a boa fé, a proporcionalidade, a justiça ou a confiança, princípios informadores das relações públicas num Estado democrático, sejam letra morta, violando-se a Constituição e os mais elementares direitos consignados nos textos de Direito Internacional de que Portugal é signatário.
O principal desígnio da política e da boa governação é a felicidade dos povos, pelo uso de meios que, em paz social, com segurança jurídica e respeito mútuo permitam o desiderato da justiça e da equidade.
Contudo, quando em nome da necessidade de pagar a qualquer custo e em prazo que apenas visa saciar a agiotagem de quem presta, tantos princípios são escamoteados e espezinhados, não terá a comunidade o direito (e mesmo o dever) de reagir, em estado de necessidade e em legítima defesa dos mais elementares direitos, que décadas de aperfeiçoamento político e social produziram? Ao quebrar unilateralmente o contrato social não abre o poder uma caixa de Pandora, tornando unilateral o que foi desenhado como recíproco, impositivo o que foi concebido como negociado, e letra morta o que eram antes princípios sagrados bebidos nos mais antigos códigos e declarações, e até na doutrina social da Igreja?
Pacta sunt servanda. Com os credores, claro, mas dentro da equidade, e num quadro que viabilize a quem quer cumprir, que o possa fazer. Mas, convenhamos, também com os trabalhadores, os utentes de serviços públicos, os consumidores e os cidadãos de boa fé que, saturados, já não podem com tanta má fé.

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