Chove na mente,
é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança
fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos
espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente. Como desolada está a praia,
cinzenta como o espírito, náufragos vivos circulam, aflitos por uma miragem.
Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de tranquilizantes melodias.
Outubro. É
Outono no país das flores, de vez foram os cravos nas armas, agora apontadas a
subjugados prisioneiros num país que foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo,
adormecida guitarra talhada no ventre dum povo culpado por ousar sonhar. O mar provoca,
desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar a onda, temerário, e
logo um atávico apelo a desistir. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, e estão
longe, num chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro,
passo Kurt Weil, rápido, por onde o caminho para o próximo whisky bar?…
Escrevo. Apago.
Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar,
com cravos em canos agora a nós apontados? Brancos, desta vez quero cravos brancos, alvos e puros.
A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, e tão longe de Portugal…
Pedro Toscano,
és um idiota. Ululantes hordas conformadas patrulham a Cidade, raptada
pelo medo e pelo spleen. Assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes
límpidas e ledas, e agora ameaçadoras, prometendo castigos, cruéis e castradores,
outonais armagedeões e vinganças soezes. Que fazer, para não mais
despertar, para voltar ao filme onde fomos felizes? Ah, como é puro o cheiro
límpido do iodo na praia húmida e odorizada!.
Caneta, papel,
umas linhas para a imortalidade, esculpidas no areal, ao lado, trilhos
na areia molhada. Empolga, a canção, no CD do carro, a Alabama Song,
seja a dos Doors ou de Bowie, e Portugal amarelo-scotch passando em
fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro, e sem pedras de gelo. Vamos para Alabama, entricheirar-nos no whisky bar! Cheers! Lá vai a Sílvia com o
caniche, a caminho do Angra, e eu sóbrio ainda.
O Chico emigrou,
cansado de desesperar, globalizou-se, como se diz agora, o Zé Luís morre aos
poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel, surpreendi
ouvindo o Zeca, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Fred e já madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.
No quiosque,
anorécticos jornais vendem medo, intranquilos, invasores,
cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselha-se deixar de os ler.
Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras,
analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos
adjectivos, talvez salvemos o mundo aí ao quinto gin. Limão. É o limão que tira
a piada à vida.
Deixou-me, a
Mafalda, cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool, redentor
e concubino. Amigo certo, presenteou-me com uma poética cirrose, maleita de
intelectual, é o mínimo, reconheço. Não morrerei de pijama, mas de fraque, que não
se ressuscita de pijama. Espero que no tal Céu haja Visa, parece
que não deixam levar dinheiro.
De partida
agora, posso pensar em madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos
sobre a laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando escreva um poema. Campa, sim, quero uma campa, grunge, alistado no exército de
cruzes, entre memoriais de defuntos imortais, nada de irrespirável e tórrido
crematório, coisa para leitão, frango ou Joana d'Arc.
No carro registo
silenciosos gritos, cúmplices cirroses visitadas com caneta de aparo. Passou
a Ângela no calçadão, sem que oiça, trauteio baixinho a Alabama Song, pelo
retrovisor vejo o Max, pálido, no banco de trás. Grande Max, já partiu, e de fraque,
sete outonos atrás. Espera, Max, vou a caminho!
É cruel, a
caneta, e o aparo. As palavras sangram, e impiedoso, o aparo mata, invasiva arma
contra palavras vãs. Com tinta preta e a grosso se deviam proclamar
revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios, apunhalar palavras em
confidenciais cadernos.
É quinta-feira.
Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis as quintas,
convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu na sexta. Todos os dias
ressuscito, para tornar a morrer. Melhor outro copo no bar. O sol, esfíngico,
põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, o CD repete Alabama, em looping insistente,
talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon. Aguarda, Max,
vou já!
Pedro Toscano, poeta de cirroses, sempre em copo
alto, na véspera da Libertação.
PS-Ninguém paga um scotch?
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