Telefonar ao Rui, porque não?
Fazia meses que não se viam, o novo emprego em Almada afastara-o, nem Facebook nem um SMS, a voragem dos dias
ia deixando a velha amizade pelo caminho. Será que ainda havia amizade, e não
apenas a necessidade de ter pessoas à volta, cultivando imagens e não pessoas
de carne e osso? Filipe descrera já da verdadeira amizade, o silêncio de Rui,
seu velho companheiro, era frustrante, as coisas apenas pareciam ter durado
enquanto não partisse para melhor, talvez porque os vultos bons dos dias maus
lembrem a existência desses dias maus, mesmo quando têm dentro gente boa, firme
e leal.
Filipe sempre estimara os amigos,
todos, dos dias bons e maus, acreditava que quando viessem os bons haveriam de
celebrar, sobreviventes, sempre acreditara nisso. Mas não. O que para ele
era amizade para outros não passava de rotina, do tásse bem, de figurantes na espuma dos dias. Rui arranjara namorada nova e
não voltou a ligar, apesar das promessas de lealdade, sumira.
Sentado numa esplanada da praia,
Filipe saboreou o silêncio, cansado do mundo, de
ilusões. Envelhecia-lhe o corpo, e se sempre procurara manter um espírito jovem
e crédulo, tinha de admitir que assim não era já. Começava a ver mal, ele que
sempre se metera com os “caixa de óculos”, não distinguindo já as letras do jornal.
O álcool, antes libertador, era agora pesado, bebidas brancas nunca mais, que o
fígado delator se queixava, as caixas de Ben-Uron,
antes apodrecendo no armário, tinham agora saída frequente, logo chegaria a
iníqua próstata, a vida a estreitar caminhos e a fechar as portas. Pequenas por
enquanto, logo as farmácias substituiriam os bares, na busca de bálsamo para o
corpo e anestesia para a alma.
O mar era uma coisa estranha.
Poderoso, mas estranho, à falta de se poder domar, contempla-se, como que
querendo amaciá-lo. Apático, Filipe olhou o horizonte, e qual diaporama, viu o seu
passado em filme, reflectindo como nos seus quarenta e sete anos já vivera
várias vidas, todas diferentes, sempre nela entrando renovados personagens,
histórias e amizades, logo encerradas em capítulos estanques e tudo de novo
recomeçasse, Tântalo urbano capturado pela mágoa. E ele, ingénuo, voltando sempre a dar o benefício à Vida, e esta a jogar
às escondidas, sempre com os mesmos personagens, e estes com caras novas, de
geografias recentes. Idiota, nunca mais aprendia a não cair na ritual
armadilha, a acreditar em desacreditar das pessoas, com a limpidez da verdade vertida
na intermitência da farsa.
Mirou o telemóvel, e correu a
agenda com o cursor: o Rui, a Susana, o Beto, a Maria Madalena, números antes
sinal de alegria e festa, milhentas vezes tocados para cá e para lá, eram agora
arquivo silencioso e morto, o Rui que diariamente falava pelos cotovelos até o
seu número esquecera, melhor seria apagá-lo e virar a página.
Era um lamecha. Crescido nas
festas de garagem e nas promessas de amanhãs cantando, tardio crente na amizade
do tudo largar para acorrer aos “nossos”, sagrados, de novo se via só. E o mais
perturbador, é que se sentia bem, couraçado de novas traições, ausente, mas
presente para si, nunca como agora apreciara tanto a solidão, ele que a receara
em tempos. Os da sua geração saltitavam do dentista para o centro de saúde,
caseiros e sem conversa, vencidos da vida e chatos, neles revia a sua
juventude, pouco lhe diziam já, sombras nimbadas mas etéreas, arquivados no
passado onde pertenciam, no álbum, guardadinho no baú das emoções.
Aos amigos recentes, agradava-lhe a juventude, os sonhos, o poder vestir a imagem paternal de irmão
mais velho, companheiro cota, e
protector. Tudo era efémero, porém, olhou em volta inquieto, e tudo lhe pareceu
fugaz, sem futuro, todos amargamente sem futuro, vencidos da vida e sem vida,
arrastados pelas mesas dos cafés ou deambulando pelos shoppings ou pelo libertador calçadão da Praia Grande.
Em silêncio, foi até ao Angra, como sempre bebeu a fraternal
cerveja, e puxou dum papel a registar palavras que logo deitaria fora, com todos os
guardanapos aí escritos e já rasgados, teria por certo hoje já um livro escrito, até chegara a
pensar num título, Diário de Guardanapos
sem Futuro. O empregado da esplanada era da
velha guarda, “amigo”, se amigos são todos os que ficaram na foto, prova morta
dum passado a sépia. Não há amigos, pensou, há momentos. Amigos talvez os que
por acaso estavam perto quando o flash disparou.
Mas capturados na foto, apenas. No passado. Presos.
Melancólico, sentiu que algo se perdera, e
também ele se perdera, outros também, o curioso é que ninguém se ousava
encontrar, seguindo o argumento dum filme já há muito escrito, onde tudo se conta em flashback. Filme demodé, de final feliz, de vidas desejadas, não vidas vividas.
Cinemas Paraíso.
Olhou para o telemóvel, terminou a
cerveja, e sem hesitar apagou o nome do Rui. Mais um arquivado na pasta das friezas, a caminho do purgatório do esquecimento . A vida é uma agenda em
permanente actualização.
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