segunda-feira, 27 de março de 2017

Quem sabe da poda?




Num colóquio em tempos promovido pela Alagamares, enfatizando o papel da árvore no jogo entre o colectivo e o convívio, o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles lembrou ser a eco indispensável ao desenvolvimento, ironizando ter sido por a ter descurado que o homem foi expulso do paraíso. Vivemos na era do Caos, prosseguiu, o que dificultou a potencialidade da fixação. Segundo ele, são os países que garantem a biodiversidade os que mais têm potencialidade de segurança, tendo sido a compartimentação dos espaços agrícolas o que permitiu o desenvolvimento da civilização actual.
A serra de Sintra é uma zona de eucaliptos, pinheiro bravo e espécies invasoras, sendo uma tarefa a longo prazo das entidades que superintendem no território a arborização de áreas intervencionadas. Estão georreferenciadas cerca de 18.000 árvores na zona da PSML e mais de 35.000 árvores dentro do Parque da Pena, devendo as podas ter sobretudo em vista a segurança dos visitantes e os abates serem precedidos de relatórios fitossanitários com base numa avaliação técnica consciente, mas sem descurar o facto de Sintra ter sido classificada como Paisagem Cultural também pela imagem cénica e pelo conjunto.
Tem de se fazer mais para salvar as árvores, e nesse processo a auscultação das pessoas é fundamental, e de mais que uma opinião, bem como trazer as populações para a gestão das zonas verdes. Daí a urgência de suspender desde já a escandalosa devastação agora agendada para a Lagoa Azul, mobilizando activistas, associações e cidadãos em geral, antes que seja tarde demais.
Porque, espécie invasora, a bem dizer, é o Homem.

 

quinta-feira, 23 de março de 2017

Arboricídio em curso na serra de Sintra







Laranja, a cor da morte. Foto de Carmo Moser.
O ICNF, estrutura que devia pugnar pela defesa da floresta, tem em marcha uma “intervenção” nos Perímetros Florestais da Serra de Sintra e Penha Longa e mais especificamente, na envolvente aos arruamentos públicos (EN9-1 troço entre a Lagoa Azul e a Malveira da Serra, Estrada Florestal Malveira-Portela e acesso à Barragem do Rio da Mula) segundo ele visando “melhorar a segurança de pessoas e bens e garantir o bom desenvolvimento das espécies autóctones presentes no sob-bosque, as quais estão na base dos bosquetes de folhosas características da zona”
Para tal fim, foi feito um auto de marca, a incidir sobre exemplares arbóreos em fim de vida, e incidindo sobre exemplares de espécies como os pinheiros-bravos, ciprestes e acácias, visando o abate destes mesmos exemplares.
Pergunta-se: se estavam doentes, quem as deixou de tratar, ou esqueceu-se de espaço para rega, e danificou as raízes quando se realizaram obras no subsolo? Matar quem se deixa morrer, é desculpa que nada justifica.
Será que a Árvore Morta se seguirá um momento de Árvore Posta? É que não é só a situação fitossanitária que deve ser tida em conta, mas também o direito à imagem, que conforma a paisagem, e contou sobremaneira na classificação de Sintra como paisagem cultural. Como em muitas e pouco exemplares situações, raramente um abate tem sido seguido de reposição do coberto vegetal, no que de crime ambiental tal se reveste, e agora a caminho de mais um arboricídio sob a capa de defesa dos passantes e da segurança.
A Alagamares opõe-se vigorosamente a este desbaste anunciado, que técnicos auscultados dizem ser desnecessário, até pela dimensão de que se vai revestir, e tudo fará para que seja evitado. As árvores marcadas para morrer têm uma marca laranja e é em alerta laranja que os defensores da floresta e da “nossa “serra devem permanecer, pois esta não é dos tecnocratas nem dos madeireiros, mas sim daqueles que a amam, nela vivem e respiram e que não desejam ver decepada por muitas e boas décadas.
Entretanto, e em contra ciclo, sábado vamos plantar 50, 50 vozes de protesto, 50 formas de dizer não a uma atitude dita de prevenção que mais não é que o triunfo da moto serra.



terça-feira, 21 de março de 2017

No dia da poesia

"As mãos" de Manuel Alegre




Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar.
Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas de mãos.


E estão no fruto e na palavra as mãos
que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade

segunda-feira, 20 de março de 2017

No Dia Internacional da Felicidade


As Nações Unidas aprovaram recentemente uma proposta do reino do Butão no sentido de ser admitido o conceito de medição da Felicidade Interna Bruta (FIB) em contrapartida ao Produto Interno Bruto (PIB). O conceito nasceu em 1972, elaborado pelo rei Jigme Singya Wangchuck, e desde então, o reino de Butão, com o apoio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), começou a colocar esse conceito em prática, e atraiu a atenção do resto do mundo com a sua nova fórmula para medir o progresso de uma comunidade baseado na premissa de que o objectivo principal de uma sociedade não deveria ser só o crescimento económico, mas a integração do desenvolvimento material com o psicológico, o cultural e o espiritual. São as seguintes as premissas da medição: BEM-ESTAR PSICOLÓGICO- Avalia o grau de satisfação e de optimismo que cada indivíduo tem em relação à sua própria vida. Os indicadores analisam a auto-estima, sensação de competência, stress e actividades espirituais. SAÚDE- Mede a eficácia das políticas de saúde, com critérios como auto-avaliação da saúde, invalidez, padrões de comportamento arriscados, exercício, sono, nutrição, etc. USO DO TEMPO- Este é um dos mais significativos factores na qualidade de vida, especialmente o tempo para o lazer e socialização com família e amigos. A gestão equilibrada do tempo é avaliada, incluindo tempo no trânsito, no trabalho, nas actividades educacionais, etc. VITALIDADE COMUNITÁRIA- Examina o nível de confiança, a sensação de pertença, a vitalidade dos relacionamentos afectivos, a segurança em casa e na comunidade, a prática do voluntariado. EDUCAÇÃO- Leva em conta factores como participação em educação formal e informal, competências, envolvimento na educação dos filhos, educação ambiental, etc. CULTURA -Avalia as tradições locais, festivais, valores nucleares, participação em eventos culturais, oportunidades para desenvolver capacidades artísticas, e discriminação por causa de religião, raça ou género. MEIO AMBIENTE: Mede a percepção dos cidadãos quanto à qualidade da água, do ar, do solo, e da biodiversidade. Os indicadores incluem acesso a áreas verdes, sistema de recolha de lixo, etc. GOVERNANÇA- Avalia como a população vê o governo, os media, os tribunais, o sistema eleitoral, e a segurança pública, em termos de responsabilidade, honestidade e transparência. Também mede a cidadania e o envolvimento dos cidadãos em decisões e processos políticos. PADRÃO DE VIDA: Avalia o rendimento individual e familiar, a segurança financeira, o nível de endividamento, a qualidade das habitações, etc.

Desde o início do século XXI, as Conferências Internacionais sobre FIB começaram a ser promovidas primeiro no Butão, depois na Nova Escócia, no Canadá (2005) Bangkok (2007) Butão (2008) e no Brasil em 2009. Durante esse período também, o Centro para Estudos do Butão, sob o patrocínio do Programa para o Desenvolvimento Económico das Nações Unidas, juntamente com um grupo de especialistas internacionais, desenvolveu um indicador de FIB para medir esse conceito, quantitativa, qualitativa e estatisticamente. Baseando-se na premissa de que medições de bem-estar de natureza subjectiva são tão importantes como as medidas de consumo do PIB, o bem-estar ou a felicidade de uma população é analisado pela medição dos factores que levam a esse estado. Uma nova disciplina tem sido recentemente desenvolvida, chamada Hedónica e desenvolvida pelo psicólogo Daniel Kahneman, que ganhou o prémio Nobel da Economia em 2002. De acordo com esses estudos, até um certo nível de riqueza, o sucesso material de facto traz mais felicidade, quando uma pessoa progride de um estado de absoluta pobreza e miséria até uma vida confortável e um certo grau de luxo. Contudo, após um certo ponto, mais bens materiais não trazem mais satisfação. O que importa a esta altura são os factores não materiais, tais como companheirismo, famílias harmoniosas, relacionamentos amorosos, e uma sensação de viver uma vida significativa. As pesquisas sobre felicidade definem-na a combinação de três aspectos: o grau e a frequência de sentimentos positivos; o nível médio de satisfação que a pessoa reporta durante um período mais alongado de tempo; e o grau de ausência de sentimentos negativos. Até recentemente os cientistas sociais evitavam discutir o tema da felicidade porque acreditavam que seria muito difícil medi-la. Mas nos últimos anos as pesquisas hedónicas tiveram um crescimento exponencial, com mais de 27 mil artigos publicados em jornais científicos só nos últimos 2 anos. Novas ferramentas, como ressonâncias magnéticas funcionais e medição de níveis hormonais, têm permitido que os cientistas vejam quais as áreas do cérebro que se tornam activas sob determinadas circunstâncias quando alegamos estarmos felizes. Assim, os cientistas actualmente medem a felicidade sob diversos ângulos: através de tomografia cerebral, electromiografia facial, níveis hormonais, etc. E também fazem uso de questionários que avaliam o bem-estar subjectivo e que podem e devem ser usados apara mapear políticas públicas visando a qualidade de vida da sociedade. Em síntese, o FIB é um catalisador de mudança, um processo de mobilização social em prol do bem-estar colectivo e do desenvolvimento sustentável. Também é um processo de consciencialização das lideranças locais para a formação de parcerias entre os principais sectores da sociedade: governo, empresas, cidadania e academia, visando o bem-estar social e a felicidade de todos. A recente matança de Breivik na Noruega pode ser um case study: tendo o maior PNB do mundo, qual o real índice de FIB numa sociedade onde os bens materiais não são a primeira preocupação das pessoas? Afinal, também há noruegueses infelizes…

Defesa do Património e Empowerment dos Cidadãos




Estimular a cidadania ao promover a educação e as boas práticas para a defesa do Património deve ser tarefa de todos ao serviço do interesse colectivo. Com a vida moderna, as memórias do passado e a diversidade criada pela natureza têm vindo a ser destruídas ou adulteradas sistematicamente. Não se respeita a história (as tradições e as obras das gerações anteriores) nem a natureza (os ecossistemas na sua diversidade). Para que as futuras gerações tenham uma ideia da riqueza do que foi produzido, para que sobrevivam amostras dos valores produzidos pela natureza ou pela história, é necessário defender esse legado contra a miopia cultural ou devassa inconsciente. O processo de reconhecimento do valor do património por parte da sociedade no seu todo, é tarefa urgente que deve ser incentivada na senda da cidadania pró-activa e na construção de uma prática colectiva de respeito pelos bens patrimoniais (materiais e imateriais) que nos cercam.
O valor que atribuímos aos locais, objectos ou memórias é decorrente da importância que lhes atribui a memória colectiva. E é esta memória que nos impele a desvendar o seu significado histórico, valorizando-os como traço de união com o futuro que é já hoje. É possível e necessário um desiderato que permita e exija a participação cívica e que gere o envolvimento da sociedade com os bens patrimoniais e naturais que são a nossa Herança Comum.
A educação deve primar pelo desenvolvimento de acção pedagógica que valorize os bens patrimoniais formando uma consciência visando a sua preservação, compreensão e divulgação, como instrumento de alfabetização cultural, através do diálogo cultural com outros e de processos de sensibilização, sacudindo  as mentalidades, cultivando a sensibilidade inter-cultural e a consciência necessárias à formação de  um novo paradigma. De certa forma, consagrando um novo Direito/Dever do Homem.
Este processo pode interagir com o ensino formal (escolas), e o não formal (comunidade, actores culturais, associações culturais ou de defesa do património etc). A cultura tem de ser transmitida propiciando a possibilidade de manter a própria identidade. É a alma dum país expressa através de saberes, celebrações e formas de expressão do povo, “materializados” no artesanato, nos costumes das comunidades, na gastronomia, nas danças e músicas, festas religiosas e populares, nas relações sociais de uma família ou de uma comunidade, nas manifestações artísticas, literárias, cénicas e lúdicas, seja em espaços públicos, populares, colectivos ou religiosos.
É imperioso que as escolas se empenhem nesta missão, levando os alunos aos locais degradados para os sensibilizar sobre o que ali existiu e ainda pode vir a existir, contar a História, seja do grande guerreiro seja da simples lagartixa ou do doce conventual, impregnar o desejo de ver o património recuperado, incentivar o voluntariado cultural para a vigilância da natureza e civismo (evitando graffittis, piqueniques selvagens, passeios de mota selvagens ou despejo de detritos, p.e). Esse o desígnio e tarefa dos actores sociais e culturais, na Escola ou na Sociedade, e das associações ao nível local. Porque não visitar a Sintra das ruínas e dos monos, consciencializando e formando jovens para serem cidadãos e autênticos Guardiães do Património?
Nesse sentido, o processo de ensino e aprendizagem pode tornar-se um instrumento no despertar de uma consciência crítica e de responsabilidade para com a sua preservação, indo ao encontro do pensamento de Paulo Freire, na busca de uma  atitude  que capacite o educando na escola ou o cidadão  na sua rua ou cidade a compreender a sua identidade cultural e a  reconhecer-se  de forma consciente nos seus valores próprios, aumentando o seu "sentimento do nós". A postura que tomarmos diante do ambiente em que interagimos transforma-o, propiciando a nossa própria transformação. E para tanto, torna-se necessário interagir pela percepção do que o outro nos possa revelar e fornecer em conhecimentos e costumes, saberes inatos que nos servirão de material para a comunicação do nosso saber. Aprender e Defender o Património é também fazer Portugal.
Por fim, e materializando o atrás descrito, uma proposta e um desafio: porque não criar e promover núcleos de defesa do património envolvendo autarcas e sociedade civil e funcionando ao nível das juntas de freguesia, de modo permanente, informal e interventivo? Uma ideia a desenvolver.



terça-feira, 14 de março de 2017

Há uma sociedade civil forte em Portugal?



Só com uma sociedade civil forte e no quadro de um Estado Democrático se pode ter uma verdadeira política de património cultural. A política para o património deve ser um campo de compromissos, contra o fachadismo, e servida por elites esclarecidas, o que no nosso país foi secularmente contrariado por um Estado atávico e napoleónico, produto de trezentos anos de inquisição e cinquenta de autoritarismo, e onde a dita "sociedade civil" sempre foi olhada como contrapoder e inimigo com um Estado resistente aos mecanismos de escrutínio, e onde o diálogo permanente com os mais de cem mil envolvidos em associações de defesa do património nunca teve um fórum institucional permanente de expressão.

Na promoção e defesa do património, dos monumentos e sítios classificados, há que juntar cidadãos, associações cívicas, técnicos e moradores. Em Sintra, por exemplo, só se pode acarinhar uma ideia como a de Paisagem Cultural se ela for originada em consensos e como instrumento de desenvolvimento para quem habita no seu seio, e não se funcionar como o eucalipto que tudo seca e põe a comunidade contra si. Não há paisagem cultural sem pessoas, e não há gestão bem sucedida sem consensos.

Sintra integra desde há alguns anos a Aliança das Paisagens Culturais, uma rede internacional vocacionada para preservar espaços declarados Património da Humanidade pela UNESCO.Em 2008 produziu-se a Declaração de Aranjuez, onde os sítios classificados expuseram as suas inquietações e analisaram a necessidade de compatibilizar a preservação dos lugares com um adequado desenvolvimento económico e social das terras e gentes em seu torno.

Um dos pontos chave desta declaração faz referência ás políticas de difusão do património cultural entre a população, assinalando que a melhor forma de gerar cultura entre os cidadãos passa por estes valorizarem o seu próprio património, pois só se pode valorizar o que se conhece.

O texto exige “implicação, cumplicidade e compromisso” do mundo científico na melhoria destes lugares, e na garantia da sua sustentabilidade, e apela à participação cívica das comunidades locais, enquanto elemento fundamental para um desenvolvimento sustentável das áreas classificadas.

Traduz este anseio o reconhecimento da necessidade duma cultura democrática de participação e transparência na gestão da Paisagem Cultural, chamando os stakeholders, parceiros da sociedade civil mais vezes em ligação com os técnicos. Paisagem Cultural sim,mas pró-activa e não repressiva e distante.

O sucesso de qualquer empreendimento depende da participação das partes interessadas e por isso é necessário assegurar que as expectativas e necessidades sejam conhecidas e consideradas pelos gestores.O envolvimento de todos os intervenientes não maximiza obrigatoriamente o processo, mas permite achar um equilíbrio de forças e minimizar riscos e impactos negativos na execução do mesmo. Na gestão de empresas ou projectos com implicação em certos grupos, e na sociedade civil em geral, as organizações internacionais recomendam hoje a auscultação e participação activa de stakeholders locais na implementação e prossecução de projectos com repercussão na comunidade, na perspectiva de a todos envolver, convidando-os para reuniões e visitas, recolhendo contributos e mudando o paradigma com uma filosofia de “abrir para obras” acompanhando as recuperações em curso, que é internacionalmente aconselhada, tendo já sido verificado no caso do Chalé da Condessa ou na recuperação do Castelo dos Mouros. Mas muito trabalho há a fazer ainda, e necessário se torna criar estrutura física e mental para que o trabalho em curso não seja resultado apenas do maior ou menor voluntarismo das equipas directivas que estão no momento. O modelo de gestão e a correlação acionista adoptada podem ser melhorados, com uma maior intervenção decisória por parte da Câmara, legítima representativa das comunidades e única estrutura eleita e sufragada. Mas tal como é dever das instituições abrirem-se à sociedade, imperioso se torna uma maior tomada de consciência da sociedade de que não deve deixar as respostas todas em mãos alheias e se deve empenhar mais em causas que são de todos. Só assim a democracia será madura e os cidadãos o serão em plenitude.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Alagamares: Venham mais doze!



Nunca devemos julgar que aquilo em que acreditamos é efectivamente a verdade, escreveu um dia Agostinho da Silva, daí a necessidade de questionar, ouvir e duvidar sempre, numa dúvida que cria e reconstrói, esse o desafio de quem quer pensar  no pleno exercício da liberdade.

Foi há 12 anos já, poucos na História do tempo, mas um intenso tempo de regeneração para aqueles que quiseram sair do conforto da passividade, e do pessimismo militante para a militância optimista, o desassossego e um renovado sentido da vida em sociedade.

E assim rimos em convívios e discussões, tomámos posições fugindo ao cómodo limbo das meias verdades, juntámos artistas, escritores, ativistas, decisores, não para a crispada conspiração do cliché mas para uma límpida e generosa busca de caminhos, soluções, para ser parte de algo, com as pessoas e nunca contra elasm senão as que neguem o direito a ter ideias.

Em mais um aniversário, agradecemos a presença dos muitos amigos e companheiros deste projecto que numa fria noite de Inverno juntou um punhado de idealistas nas saudosas Caves de S. Martinho, quando com generosidade partimos para a aventura de ser solidários ainda que por vezes solitários, idealistas mas nunca idiotas, empenhados no desempenho e chamando aqueles e aquelas que têm coisas para dizer e desde então quiseram dizer presente.

Vivemos na era do Me, Myself and I, do hedonismo egoísta e do Eu como centro de todas as coisas, em que todos têm uma página numa rede social mas onde sobretudo explanam estados de alma, fotos de si próprios, partilhando vulgaridades e apregoando solidariedades frívolas com pessoas e causas, que deviam ser simples e desinteressadas. Aí se destilam ódios, rancores, frustrações e silêncios desde chingar o clube de futebol adversário, exibir o cão, a foto do filho pequeno, ou o  marisco que se foi comer à beira mar, tudo desabafando no confessionário digital, à espera de caridosos likes, veniais lols ou dum qualquer emoji repetido pela enésima vez.

O Homem Narcisista em que muitos nos tornámos não acredita no futuro, é pressionado pelo individualismo competitivo, ansioso, entediado, cínico e supérfluo, produzido para consumo imediato. O “eu primeiro” e a falta de percepção do outro chega a extremos em alguns casos.

Errantes, corremos o risco de virar zombies zurzindo telemóveis e tablets como antes puxávamos das armas no tempo das guerras. Desejamos ser compreendidos, mas dispomo-nos a compreender cada vez menos, queremos ser ouvidos, mas não ouvimos senão a nós mesmos.

Todos os dias vemos nos media o quanto o respeito ao próximo é aviltado e o quanto é mais importante TER do que SER, numa distorção dos vínculos afetivos sem limites ou parâmetros. Ouve-se e vive-se a falta de perspectiva ou de sentido no trabalho, na educação, na saúde, na vida.

Essa falta de perspectiva decorre da convicção de que há que aproveitar o dia de hoje, pois teme-se o amanhã. Para quê estudar, se não haverá trabalho no futuro? Para quê dar o melhor de si no trabalho, se se pode ser despedido a qualquer momento?

Falta comprometimento, e isso é fruto da falta de perspectiva. Como buscar objectivos de longo prazo numa sociedade com valores e expectativas a prazo? Como manter relações duráveis se o que se busca é o imediatismo?

Este Admirável mundo global da Comunicação é afinal um esquizofrénico mundo de solidões gritadas para amigos virtuais que mais não são que surdos electrodomésticos, onde a emoção, a demonstração da amizade ou a opinião são estereotipados e a massificação das emoções virou um ritual

É na revolta contra este estado das coisas que continuamos na Alagamares animados por valores, sem certezas nem dogmas, a não ser o de que o futuro já não é o que era.

Em dia de festa, não quisemos deixar também de homenagear alguns de nós, pois não somos anónimos ou números.

Não quisemos deixar de lembrar um cidadão ativo e presente como o Pedro Macieira, testemunha ocular da predadora mão humana na paisagem, da beleza parnasiana do voo duma garça no rio ou duma flor clorofilando os ares. Com o seu blogue de referência, o Rio das Maçãs, quase contemporâneo da Alagamares, tem sabido pela acutilante imagem e pela pertinente insistência em causas comuns amar Sintra e as suas gentes. Com Pedro Macieira, o repórter está sempre lá, bombeiro das causas da polis, cronista dos dias simples ou marcantes.

No David e na Ilesa, temos particulares amigos e parceiros, devotados à causa das artes, onde se mesclam os sons da cidade gutural com a sonoridade açucarada da África virginal. Mais que um projecto musical, a Uno é um projecto de solidariedade, a que souberam dar sentido, eles e mais companheiros, com o trabalho desenvolvido no apoio à grande mátria lusófona, a todos inspirando e motivando.

Em Sérgio Luís Carvalho homenageamos um senhor da palavra escrita, que trata a História como um fresco e onde qualquer um de nós poderia ser parte das tramas apresentadas. Autor, entre uma vasta obra, do celebrado Anno Domini 1348, ano em que a peste ceifou Sintra, ao lermos essas páginas palpitantes sentimos que também estivemos lá, pelo epidérmico da sua escrita, iluminura resplandecente e singela. Nele queremos hoje celebrar a obra consistente e didática dum autor de Sintra e que em Sintra situou também algumas das suas histórias e enredos

Agradecer também ao Grupo Desportivo e Cultural de Galamares, ao Ardecoro, à Uno, ao Conservatório de Música de Sintra, ao Ars-Collares-Trio, ao duo de guitarras de Queluz, ao Paulo Campos dos Reis e a todos os companheiros destes 12 anos, às instituições, parceiros e amigos que connosco colaboram, pelo seu empenho e contributo, que em nada nos surpreende, pois sabemos com quem contamos.

Já no dia 25 vamos fazer a nossa Caminhada da Primavera, e plantar 50 árvores na Tapada de Monserrate, bem como apresentar o novo livro de André Freire “Para lá da Geringonça”. Dia 9 de Abril vamos reunir políticos e pensadores no News Museum para o primeiro de um ciclo de debates sobre a pertinência das ideologias quando passam 100 anos da revolução russa. E empenhadamente, continuaremos a dar contributo crítico e positivo para as questões que nos convocam como cidadãos empenhados, da recuperação do património material e imaterial às questões do ordenamento do território, da promoção dos artistas e criadores locais, do ambiente, da memória histórica ou na área da solidariedade social.

Escreveu Albert Camus “A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”. Somos deste presente, e queremos dizer presente.

Vivam os que lutam, sonham, sofram e fazem andar o mundo!

Vivam os que querem uma Sintra criativa, inclusiva e com massa crítica!

Vivam os que com o seu empenho e emoção constroem a Liberdade pela afirmação de espaços de tolerância, diálogo, confronto de ideias e quebrando inércias.

Viva a Alagamares, espaço onde não há o Outro, mas o Nós, soma de eus e não de Egos,

Uma dúzia já está. Aguardem-nos para mais doze!

 


 

quarta-feira, 8 de março de 2017

Património, Memória e Herança





A Paisagem Cultural de Sintra, aprovada a 6 de dezembro de 1995, em Berlim, enquadra-se nas categorias II, IV e V do parágrafo 24, estabelecidas pela UNESCO na "Orientations devant guider la mise en oeuvre de la Convention du Patrimoine Mondial". Durante o século XIX Sintra exerceu uma influência considerável sobre o desenvolvimento da arquitetura romântica europeia. No entanto, o seu interesse não se resume certamente a um ou dois edifícios de evidente importância, antes se espraiando numa plêiade de palácios e parques, de casas senhoriais, com os seus jardins e bosques, palacetes e chalés, envoltos numa vegetação exuberante, ou trechos de muralhas que serpenteiam nos cumes da serra, e a tal singularidade não foi alheia a UNESCO, compreendendo a harmoniosa complementaridade entre paisagem natural e uma intervenção humana riquíssima.
Na promoção e defesa deste património, dos monumentos e sítios classificados, há que juntar cidadãos, associações cívicas, técnicos e  moradores. Só se pode acarinhar uma ideia como a de Paisagem Cultural se ela for originada em consensos e como instrumento de desenvolvimento para quem habita no seu seio, e não se funcionar como o eucalipto que tudo seca e põe a comunidade contra si. Não há paisagem cultural sem pessoas, e não há gestão bem sucedida sem consensos.
Recorde-se que aqui foi aprovada a Declaração de Sintra, que procurou unir esforços para a mitigação e adaptação às alterações climáticas, documento onde se procurou recolher experiências das várias zonas classificadas, criar plataformas de conhecimento para promoção de boas práticas, consolidar a valorização do património, criar e manter parcerias e contribuir para um debate global sobre alterações climáticas.
Sintra integra igualmente desde há alguns anos a Aliança das Paisagens Culturais, uma rede internacional vocacionada para preservar espaços declarados Património da Humanidade pela UNESCO.Em 2008 produziu-se a Declaração de Aranjuez, onde os sítios classificados expuseram as suas inquietações e analisaram a necessidade de compatibilizar a preservação dos lugares com um adequado desenvolvimento económico e social das terras e gentes em seu torno.
Um dos pontos chave desta declaração faz referência ás políticas de difusão do património cultural entre a população, assinalando que a melhor forma de gerar cultura entre os cidadãos passa por estes valorizarem o seu próprio património, pois só se pode valorizar o que se conhece.
O texto exige “implicação, cumplicidade e compromisso” do mundo científico na melhoria destes lugares, e na garantia da sua sustentabilidade, e apela à participação cívica das comunidades locais, enquanto elemento fundamental para um desenvolvimento sustentável das áreas classificadas.
Traduz este anseio o reconhecimento da necessidade duma cultura democrática de participação e transparência na gestão da Paisagem Cultural, chamando os stakeholders, parceiros da sociedade civil mais vezes em ligação com os técnicos. Paisagem Cultural sim,mas pró-activa e não repressiva e distante.
O sucesso de qualquer empreendimento depende da participação das partes interessadas e por isso é necessário assegurar que as expectativas e necessidades sejam conhecidas e consideradas pelos gestores.O envolvimento de todos os intervenientes não maximiza obrigatoriamente o processo, mas permite achar um equilíbrio de forças e minimizar riscos e impactos negativos na execução do mesmo.
Vem isto a propósito de na gestão de empresas ou projectos com implicação em certos grupos, e na sociedade civil em geral, as organizações internacionais recomendarem hoje a auscultação e participação activa de stakeholders locais na implementação e prossecução de projectos com repercussão na comunidade, na perspectiva de a todos envolver, convidando-os para reuniões e visitas, recolhendo contributos e mudando o paradigma com uma filosofia de "abrir para obras" acompanhando as recuperações em curso é internacionalmente aconselhada, tendo já sido verificada no caso do Chalé da Condessa ou na recuperação do Castelo dos Mouros. Mas muito trabalho há a fazer ainda, e necessário se torna criar estrutura física e mental para que o trabalho em curso não seja resultado apenas do maior ou menor voluntarismo das equipas directivas que estão no momento. O modelo de gestão e a correlação acionista adoptada podem ser melhorados, com uma maior intervenção decisória por parte da Câmara, legítima representativa das comunidades e única estrutura eleita e sufragada. Mas tal como é dever das instituições abrirem-se à sociedade, imperioso se torna uma maior tomada de consciência da sociedade de que não deve deixar as respostas todas em mãos alheias e se deve empenhar mais em causas que são de todos. Só assim a democracia será madura e os cidadãos o serão em plenitude.
Sintras aprovou a criação duma área de Reabilitação Urbana com cerca de 180 hectares para o Centro Histórico de Sintra.
Sobre o Centro Histórico muito já foi dito, subsistindo velhas questões como a da sobreposição de planos e entidades, que criam uma cacofonia de gestão e não permitem aos decisores uma assunção plena do seu papel. Persiste igualmente um segmento do turismo baseado no excursionismo, com uma média de dormidas no concelho de 2,3 noites (Cascais tem 3,4) e apenas cerca de 1500 camas entre hotéis, pensões e demais alojamentos, não obstante se registe o aparecimento de novos espaços de alojamento.
A degradação do Centro Histórico, desertificado, sem plano actualizado e sem atractividade para moradores e visitantes, e o envelhecimento da sua  população não incentivam a mobilidade social ou o surgimento de massa crítica e criativa a partir de dentro, a par da falta de um plano de marketing territorial assente nas virtualidades das pessoas e não só no património histórico, sendo que apesar da marca romantismo, esta não é idónea a caracterizar na globalidade um concelho onde apenas 10% da população vive na Sintra dita “romântica”. Como problema central por todos reconhecido continua a sentir-se o da mobilidade, faltando bolsas de estacionamento e uma rede de mini buses que atravesse as zonas críticas a carecer de preservação ambiental, problemas que estamos a enfrentar e a combater.
Apostar no transporte público no acesso à serra e seus polos turísticos, com preços moderados para quem aceda aos palácios de transporte público, sendo o bilhete de entrada e transporte vendidos em conjunto, e com um diferencial de preço significativo, pode ser uma das medidas entre outras, bem como o apoio fiscal, o reforço da sinalética e o incremento de placas explicativas dos monumentos a visitar. Adoptar benefícios em sede de taxas ou impostos a quem voluntariamente recupere património, bem como destinar parte do montante cobrado em sede de contra-ordenações a um fundo de reabilitação urbana, são iniciativas que se afiguram plausíveis, no quadro de uma estrutura que promova o emprego e o crescimento, as actividades económicas essenciais (na óptica do turismo, empregabilidade, fixação no terciário, lazer e habitação qualificada) passando pela celebração de protocolos ou contratos programa que desenvolvam um partenariado positivo e gerador de sinergias, que se manifestem de modo permanente e não só no momento do licenciamento ou instalação.
As lojas têm igualmente que desenvolver um conjunto de especificidades, que determinarão não apenas a sua sobrevivência, como também o seu sucesso em termos de futuro, devendo a política de estacionamento ponderar a mobilidade das pessoas mas num quadro que reconheça a particularidade do Centro Histórico e a indesejável massificação turística redutora do “espirito do lugar”.
Defender o património é vivê-lo, e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos um dia receberão, estranhando primeiro, orgulhando-se depois.


terça-feira, 7 de março de 2017

Doze anos depois




Estão a passar esta semana 12 anos da fundação da Alagamares. Foi uns dias depois duma assembleia geral de uma associação local onde eu e mais alguns amigos estivemos que achámos, face ao pobre panorama da vida associativa local ser chegado o momento de algo de novo, que agregasse jovens e menos jovens em causas para lá das festas de aldeia, dos jogos de futebol entre solteiros e casados ou do bailarico de verão. Mas também sem ser um clube snob ou enfatuado, de dandys e tios pseudo intelectuais.
Sintra estava por esses dias no fio da navalha com a possibilidade de desclassificação do Património Mundial, os monumentos envelhecidos e ao abandono, e a dita sociedade civil amorfa ou pouco participativa, para lá de alguns bons mas poucos exemplos de associativismo cultural.
Foi assim que depois de um boca a boca se juntaram a 9 de Março de 2005 nas Caves de S. Martinho, café já desaparecido de Galamares, 46 amigos que por aclamação fundaram a Alagamares. Do nome medieval de Galamares, um alagamar é um terreno pantanoso, como o era a várzea circundante, alagada desde tempos imemoráveis pelo mar que sulcava o rio das Maçãs trazendo seixos e búzios, até ao seu assoreamento. E, tal como o mar invadiu o rio, também a ação propulsora dos dinamizadores da nova associação quiseram invadir as consciências, agitar, desassossegar.E assim ficou Alagamares.
Passaram 12 anos, 150 eventos, caminhadas, dois encontros de História de Sintra, eventos com pessoas como Miguel Real, Rui Zink, Gonçalo Ribeiro Teles, Maria Teresa Horta, Gabriela Canavilhas, Galopim de Carvalho, José Rodrigues dos Santos, Sidónio Pardal, Richard Zimler, João de Melo, Filomena Marona Beja, Cardim Ribeiro ou Pinharanda Gomes e muitos outros, representantes do pensamento e da sociedade civil local. E causas como o Chalé da Condessa, a luta contra as podas agressivas, a divulgação da nossa História e património local, as oficinas de teatro do Rui Mário, as homenagens a Zeca Afonso, Maria Almira Medina ou Luís Filipe Sarmento.
Vai ser uma semana cheia de emoções e de empenho na continuação do trabalho esforçado, abertos à juventude e à inovação, sem esquecer quem trabalha e quem do nosso reconhecimento é credor. Sempre na estrada, e nunca na berma. Uma dúzia já foi, venham mais doze!
 


quarta-feira, 1 de março de 2017

Dilúvios da Alma

 

Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão, cheio de gente a ver o mar em circenses acrobacias, como medonha e bela está a praia, espumosa bátega de poder.

 

É Inverno ainda no país das flores, de vez  se foram já os cravos furtados das armas, agora apontadas a subjugados prisioneiros num país que já foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo acusado de ousar sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar a onda, ousando, e logo atávico o apelo a desistir, vencido de si, temeroso. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. Recordo Kurt Weil, por onde escapar para o próximo whisky bar?…

 

Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar, com novos cravos em cano velho agora, distraído apontado a nós? Brancos, desta vez querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera tarda… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, não fiques longe de Portugal…

 

Somos uns idiotas, ululantes hordas de conformados seres patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen, assustam, cercam. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas perigosas agora, promessa de castigos, cruéis e castradores, e de estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não mais despertar, para de vez voltar ao filme onde todos são felizes, que inveja, ah, como é puro o cheiro límpido do iodo. É avaro o Verão em chegar, mas magnânimo o iodo.

 

Caneta, papel, umas linhas para a imortalidade esculpidas no areal, ao lado trilhos de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, a velha Alabama Song, sejam Doors ou David Bowie, é Portugal amarelo cor de scotch passando em fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro e sem pedras de gelo. Vamos todos para Alabama, acolhidos no whisky bar!. Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a caminho do Angra, e eu gelado aqui.

 

O Chico emigrou, cansado de desesperar, emigrou não, globalizou-se, como se diz agora, o Zé Luís morre aos poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel surpreendi ouvindo o Zeca e Doors, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Rafa, só alta madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.

 

No quiosque, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler jornais. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, talvez salvemos o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à vida, amancebados que nos tornamos com o álcool redentor e concubino.

 

Penso na morte, e, não, não morrerei de pijama, mas de fraque, não se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro. Até lá cogito novas madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Jorge faça um poema. Campa, sim, quero uma campa, grunge, alistado no exército de cruzes entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para frango ou Joana d'Arc.

 

Passa a Ângela no calçadão, trauteio baixo a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max no banco de trás, grande Max, já partiu, e de fraque, sete Outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!

 

É cruel, a caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso  o aparo mata, invasiva arma contra as palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar  epitáfios, apunhalar palavras errantes  em confidenciais cadernos.  

 

É feriado. Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis os feriados no Inverno, convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta, aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num feriado à noite, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a um copo no bar. O sol, esfíngico, põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, na cabeça ecoa o Alabama Song em looping, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon, fico-me pela cerveja à espera da Libertação. Com Visa.