sábado, 3 de novembro de 2012

Klingsor



Sábio, o enfeitiçado caldeirão ia borbulhando. Nessa era das trevas e noite do Mundo, alvor de conquistadores e heróis, no alto da Serra Sagrada, longe dos elfos e silfos, vigiava castigador o mago Klingsor, velho de duzentos anos, nos domínios que Afonso Henriques, na madrugada de Portugal dera aos da cruz obnubilada, rodeada de laboriosos mouros manejando charruas nas várzeas. Lá bem alto, num refúgio sinistro, rodeado de pedras e urze sem idade, Klingsor, o Mago, construíra um jardim mágico, de ninfas e amazonas, que com seus perfumes e encantos seduziam os incautos, fazendo-os abandonar a pureza, perdendo-os com os seus feitiços e assim punindo os violadores do jardim.
Vinte anos haviam passado desde que a maura lança cedera em terras de Xintara, Afonso continuou para sul e leste, tempos depois, com angústia, souberam os cavaleiros ter o rei caído em Badajoz, grave aleijão o retinha no leito, em Coimbra, não fora seu genro e teria o rei de Badajoz retomado seus domínios. Pensava Afonso Henriques ser sorte aziaga a que o derrubara nesse dia infausto, era porém o poder dum anel que Urraca Ximenes, conluiada com Klingsor, um dia lhe ofertara, que permitia que à distância este lhe manietasse o destino, ardendo em febre no paço de Coimbra. Tal maleita, agoirara Urraca, só coração sem pecado poderia debelar, quando não, o reino luso soçobraria aos desígnios de Klingsor.
Gonçalo Ramires, moço do Arrabalde, crescera nas faldas da serra. Órfão de Ramiro, morto em cilada no além Tejo, aos catorze anos sonhava com feitos de cavalaria, caldeado na virtude e sem ódio no coração. Avisado da existência de Klingsor, alertado estava para que não se aproximasse do eremita, que por bruxarias tentava perder o reino novo. Certo dia, perseguindo um gamo, passou os muros do jardim proibido, galgando a alcáçova de Canaferrim, temida fronteira dos medos onde estranhas bestas serpenteavam na mata orvalhada. Um silêncio perturbador dominava no meio das brumas, ao fundo, um cisne altivo nadava num lago espelhado. Atraído, Gonçalo quis vê-lo de perto, e,  sem receio, o cisne deixou-o aproximar-se, para logo por magia se revelar como uma esbelta moura, Morgana seu nome, prisioneira de Klingsor. No cume ventoso, o mago manipulava, vendo a cena reflectida numa tina de água, e com feitiços conduziu Morgana a seduzir Gonçalo com a sua beleza e graciosidade. Repentinos silfos esvoaçantes emprestavam gravidade ao momento, Klingsor, cruel,  seguia o seu plano: uma vez subjugado pela sensual Morgana, dele faria um cavaleiro das Trevas, com a missão de pôr cobro a Afonso, moribundo em Coimbra.
Dois rouxinóis chilrearam na floresta, um furão atravessou o restolho, e Gonçalo e Morgana, sem trocar palavras, falaram a linguagem dos corpos, selada com um beijo cristalino. Súbita, uma dor lhe perpassou o corpo, qual lâmina afiada, em Coimbra e ao mesmo tempo, El-Rei Afonso soltou um grito de dor, como se através do beijo o fel de Klingsor atingisse as suas presas subjugadas. Suspeitando da armadilha, Gonçalo sacou da espada, e dum só golpe decepou a moura, que voltando a ser cisne, tombou ensanguentada, avermelhando o lago. Um sonoro trovão ameaçou os ares, Klingsor chispou de ódio. Correndo para o Arrabalde, Gonçalo reuniu os de Canaferrim, que de imediato galgaram a serra, a cercar o bruxo no castelo. Ao falhar com Gonçalo, Klingsor perdia os poderes, e, furioso, ordenava aos elfos para marchar sobre os de Sintra. Impotente, porém nada lograva, em Coimbra, ao mesmo tempo, também Afonso  melhorava e resoluto pedia a armadura e um cavalo, para pasmo do chanceler e das infantas. Já o tropel dos cavalos alcançava o castelo, com Gonçalo à cabeça, quando enormes labaredas invadiram as muralhas, soltando um calor tal que não puderam os do Arrabalde aproximar-se, como se o Juízo Final tivesse chegado.
Dias depois, apagado o fogo e assaltado o fumegante antro do mago, dele não restavam vestígios de que alguma vez ali tivesse estado. Do alto da barbacã, Gonçalo olhou a vila, onde alheios e laboriosos os mouros lavravam as terras, um sereno mar ao fundo marcava a fronteira dos Homens. Um mensageiro chegou entretanto, anunciando o recobro do rei, feito saudado com um frenético repicar de sinos. Num momento benfazejo, o anel de Urraca caíra-lhe do dedo, e também ele estava livre agora, para a defensão do Reino e o louvor a Deus.
Anos mais tarde, partiu Gonçalo para os Santos Lugares. Herói em Éfeso, guerreiro em Gaza, tornando à Pátria, foi feito alcaide de Sintra, aí morrendo de provecta idade. Em silenciosas noites de luar, alguns dizem ainda avistar Klingsor, jurando vingança em desvairadas ameaças. Na Fonte dos Passarinhos, um elegante cisne aguarda os visitantes, às ordens do mago, dissimulado na pedra.
 

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