quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Largo do Morais


Subindo ao Largo do Morais, lá estava a casa, abandonada no largo, deprimido e triste, antes lar de vidas desafogadas e decrépita, agora, as madeiras apodrecidas e o telhado periclitante.
Em tempos ali morara uma velha solteirona, falecida para três anos, e apenas um descontraído gato dormitava agora  ao sol, no muro comido pelos anos e conquistado pelo musgo. Vizinhos garantiam ouvir ruídos à noite, alguém cantando, nunca mais  luzes ou pessoas ali se voltaram a ver nesses três anos, apenas o som de música antiga, vinda de dentro, a Guilhermina do 56 jurava ser uma canção dum filme português antigo. Apesar de bem situado, ninguém aparecera a comprar o imóvel, desconhecido que era um proprietário visível.
Joaquim Fernandes, aposentado da polícia e vizinho no Morais, desde há tempos lhe fazia espécie a música vinda do interior da casa, ele mesmo escutara já a canção num tom de voz sumido, amargurado contudo, quase podendo imaginar a cena do filme, com a Milú,  três pessoas pelo menos  garantiam ter ouvido a mesma, num timbre roufenho, como saída dum velho vinil.
Numa sexta-feira à noite, já um vento desagradável assolava o largo e a lua acetinada recortava o torreão da Quinta dos Lagos, quando vindo da casa o som familiar da música de novo se fez sentir, sussurrante e melódico. Joaquim, que apanhava ar depois do jantar, decidiu-se a seguir o som, que levava até à casa encerrada. Desperto, o gato pardo das tardes miou, vindo do quintal traseiro, as portadas há muito encerradas não adivinhavam presença alguma, sem luz, tropeçou mesmo num galho seco. O som era agora claro e audível, e maior o breu, nem vivalma em redor, as casas próximas demasiado longe para que o som lá chegasse.
Feito silêncio por minutos, voltava já a casa esquecendo a misteriosa música, quando o gato, roçando-lhe as pernas, correu em direcção a um galinheiro nas traseiras, desaparecendo lá dentro. Curioso, seguiu-o, espreitando, no interior havia um acesso a um anexo em cimento, um cheiro nauseabundo denunciava a presença de animais ou acumulação de detritos. Uma ninhada de gatos, pensou.
Sem que o tresmalhar na folhagem deixasse denunciar-lhe a presença, aproximou-se, e por trás dum candeeiro a petróleo, descortinou uma mulher velha e desdentada, cabelo branco em desalinho e roupas enxovalhadas, nunca por ali a vira, e ignorava que alguém ali vivesse ou se abrigasse. Ficou por momentos a observá-la: à sua volta, uma mala de cartão, caixas velhas, uma contendo um largo chapéu de cerimónia, coisa antiga, debruada com plumas. Numa mesa manca, com três pernas apenas, velhas revistas espalhadas, nas capas, eventos apagados pelo tempo. A velha, trincando uma maçã que religiosamente retirou dum plástico, trauteava canções esquecidas, êxitos dos anos trinta, uma estola ratada e carunchosa ao pescoço denunciava um passado interessante, quiçá próspero. Absorta, sorrindo para o infinito, cantava a Casinha, como se de um hino se tratasse. Olhos fechados e encerrados no passado, sem que se apercebesse do Joaquim, saiu pouco depois na direcção da Portela, a buscar comida nos caixotes, o gato, desinteressado, deixou-se ficar na enxerga que lhe servia de cama. Aproveitando a ausência da mulher misteriosa, aventurou-se no tugúrio: uma caixa de pó-de-arroz e um espelho enferrujado sobressaíam na mesa de três pés, revistas, já antigas, noticiavam espectáculos de outros tempos, revistas do Parque Mayer, vistosas coristas, numa das revistas um grupo posava com Maria Matos, a Mafalda do Costa do Castelo. Comum a todas elas, um corpo de baile, numa, aberta na página central, a consagrada Milú posava alegre e glamorosa com uma bailarina, que a legenda identificava como Ausenda Rebordão, promissora corista do Maria Vitória e primeira figura da revista do Capitólio, com Ribeirinho.
Um súbito soar de passos denunciou o regresso da velha, alguém lhe dera uma sopa já fria. Joaquim voltou a esconder-se, descobrindo o lenço com que abrigava a cabeça, reconheceu nela traços da Ausenda da foto com Milú, na revista amarelecida, e entendeu então, ali estava uma vida atirada para a valeta do destino, alguma altivez no olhar, o pano quase a cair numa récita que virara drama. Sem coragem para a abordar, retirou-se, arrefecia, e a velha corista abrigava-se, terminando a sopa, com o gato a seus pés.
Nos dias seguintes, à hora costumada, a voz rouca de Ausenda, antiga vedeta do Parque Mayer, voltou a soprar trazida pelo vento do galinheiro do camarim improvisado, sem conforto ou comida, mas onde não faltava uma caixa de pó de arroz. Misteriosamente, um cesto com sopa e fruta e um cobertor foram lá deixados depois, e todos os dias comida, desde então. Ainda hoje uma roufenha melodia ecoa nostálgica no discreto palpitar da noite de Sintra, até que findo o terceiro acto, o pano desça de vez, sem palmas nem flores ou modesto primeiro andar, mas talvez pertinho do céu….

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