A aproximação ao aeroporto do Funchal trazia a Ralph a
lembrança da primeira vez que visitara a ilha, trinta anos antes, para a
lua-de-mel com Marjorie. Jornalista dum diário de Manchester, vinha cobrir as novas
realidades da ilha, para o suplemento de domingo, o governo da Madeira,
interessado na promoção, pagaria as despesas. Nessa altura, a pequena pista era
o terror de qualquer piloto, não aterrando à primeira, teria de voltar a
levantar, e travar a fundo, para não ir cair no mar, recordava como Marjorie
lhe segurara as mãos, assustada.
No aeroporto, segurando um ramo de estrelícias, uma
menina vestida com um traje regional acolhia o periodista, e logo atrás dela, o
doutor Ornelas, delegado regional do turismo, e seu cicerone, durante três dias
correriam a ilha, a ver as novas infra-estruturas e atracções para o turismo.
Do que se recordava, o Funchal crescera muito,
auto-estradas, novos hotéis, túneis, muitos, os locais chamavam-lhe os
“furados”, esventrando a ilha e ligando em poucos minutos o que antes levava
horas a percorrer. Lembrava-se bem da impressão que na altura lhe causara uma
aldeia num imenso vale, o Curral das Freiras, onde, apesar de ficar a poucos
quilómetros do mar, muitos nunca o haviam visto, ou saído até ao Funchal.
O doutor Ornelas há muitos anos trabalhava para o governo
regional, chefiado por um político truculento, na manhã do segundo dia, apanhou
Ralph no Reid’s e partiram para a
volta a ilha. O Funchal pululava de turistas, vindos em cruzeiros, pela manhã,
no mercado das flores, captou fotos das coloridas hortênsias, um dos emblemas
da ilha. O novo teleférico levou-os à parte alta, enquanto Ornelas ia
distribuindo folhetos e explicando as obras executadas:
-Como vê, o meu
governo tem modernizado a cidade. A capacidade hoteleira triplicou e o
movimento de paquetes vai ser muito valorizado com o novo terminal junto ao
Machico. Aqui fazemos obra! -atirou, ufano, como que fazendo um paralelo com o resto
do país, assolado pela crise.
-E é investimento
privado? -questionou
Ralph, tomando notas.
-A maior parte é
esforço do governo regional. A zona franca ajuda, também, mas o nosso
presidente entende que não se deve olhar a dificuldades no esforço
modernizador. E vê-se. Aqui e no Porto Santo.
-E a oposição não
questiona o endividamento em obras? -quis apurar o inglês -porque
a iliteracia parece ser grande ainda, segundo li.
-Ora… a oposição
local é invejosa e não chega aos pés do doutor Jardim. Grande homem, grande
homem!. Um dia há-de ter uma estátua no Chão da Lagoa, a olhar para o Funchal e
para a sua grande obra!.
Ralph sorriu, bem vistas as coisas nem sabia porque
perguntara algo de que já calculava a resposta.
Pelos novos túneis seguiram para o Cabo Girão, em Câmara
de Lobos, duas gulosas ponchas, oferta do Ornelas, predispuseram para uma
suculenta espetada no Estreito de Câmara de Lobos, antes da visita a Santana.
Ornelas ia apontando novos centros de saúde, escolas, acessibilidades, trinta
anos de empolgante bailinho sob a
batuta do timorato dirigente. Anotando tudo, Ralph perguntou por preços e
custos, a obra mostrada era francamente superior à receita arrecadada junto dos
pouco mais de duzentos e sessenta mil habitantes, Ornelas fez-lhe um briefing:
-Sabe, temos tido
acesso a muitos fundos comunitários, e os nossos deputados em Lisboa são tipos
experientes, têm sabido negociar com o governo apoios e transferências. Olhe, a
um governo dos socialistas até conseguimos que nos perdoassem a dívida, veja lá
como eram tansos. Mas é tudo em prol da Madeira. Está lindo, tudo, não está?
-e mudando de assunto, seguiram para um revigorante cálice de Madeira.
Em São Vicente, grandes obras públicas estavam em curso,
bem como no Porto Moniz, atravessando o maciço central, Ralph deteve-se a
fotografar as levadas e a floresta laurissilva. Nessa tarde, Ornelas teve de ir
a despacho no Funchal e Ralph internou-se montanha abaixo, abrigos em madeira
ofereciam acolhedores alojamentos de natureza. Sem se identificar, entrou num,
como cliente, a saber preços e se havia vagas. Relutante, um recepcionista,
pediu desculpa, mas só telefonando para o chefe. A medo ainda confessou ao
suposto hóspede:
-Sabe, aqui é só
para amigos do Alberto João…sorry, sir!
Passados três dias, recolhida a informação para o jornal,
terminou a visita com um jantar na Camacha, ao som do tradicional folclore e
saboreando o bolo do caco. Após brindar com o doutor Ornelas, que em jeito de
despedida lhe ofereceu bordados e livros sobre a ilha, ainda o questionou sobre
a captação de investimento, com a crise internacional e os cortes orçamentais
impostos por Lisboa. Terminando uma semelha e erguendo o cálice em jeito de
brinde, Ornelas, seguro, e com a experiência de muitos anos pelas secretarias
do Funchal, rematou sem hesitar:
-Ralph, acredite.
Pode faltar dinheiro em Lisboa, mas sempre haverá na Madeira. E sabe porquê?
Como no futebol, o ataque é sempre a melhor defesa…
A cem metros, e apesar do acordo de resgate com o
Continente, uma perfuradora rasgava a montanha para mais um “furado”, símbolo
da enorme obra de fomento do mais desafiador dos políticos. Ainda que em Lisboa
não houvesse um tostão “furado”, a Madeira trilharia o progresso na mão de
homens de visão, calejados na arte de fazer política.
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