Sintra,
1941. Nas traseiras da casa, na R.da Pendôa, Júlia, ansiosa, aguardava a
chegada de Alfredo, empregado na loja do Wenceslau, e seu secreto apaixonado.
Dificilmente Adolfo Saraiva aceitaria o rapaz para a filha, bem-parecido e
jogador do Sintrense, mas de origens humildes, e sem cabedal. A casa de Sintra,
herança do avô Ladislau, era o centro de onde Adolfo dirigia os negócios, que
Júlia, filha única, um dia herdaria, havia que acautelar um genro à
altura. Um doutor em Leis, era o que vinha a calhar à Julinha, moça prendada e
viciada na leitura. Até o Zé Alfredo lhe intuíra a veia para as
letras, se o pai deixasse, falaria ao Medina do Jornal de Sintra, para lhe editar os poemas. O Saraiva, contudo,
não queria a filha exposta a falatório, e sempre negou. Dezanove anos
incompletos, algumas noções de francês, era altura de lhe dar netos e assegurar
o negócio, o filho do dr. Claudino, tenente da Academia, esse sim, era um rapaz
de respeito, leal ao doutor Salazar, uma farda abrilhantaria a fortuna feita em
África numa aliança abençoada por Deus.
Júlia
conheceu Alfredo na loja do Wenceslau, um dia que lá fora comprar chita para um
vestido. Os olhos verdes de Alfredo e o penteado ondulante e vistoso,
levaram-na para casa a suspirar pelo jovem. O pretexto para o ver repetiu as
visitas à loja, uma mão quente sobre a sua, certo dia, deixou escapar rubores e
logo um furtivo beijo no gabinete de provas acordou a paixão. Era ele quem
fechada a loja corria para a vila agora, para fugidios acenos atrás da cortina.
Sem nada
suspeitar, certa noite Adolfo Saraiva convidou os Claudinos para jantar, o
velho advogado e esposa, e o filho, o tenente Rodolfo, promissor oficial, de
partida para um tirocínio em Berlim. Afável, Júlia recebeu-os, e Adolfo foi
criando ocasiões para se conhecerem. Na despedida, beijando-lhe a mão, Rodolfo
convidou-a para um passeio na Pena, mal suspeitando que o tenente
lhe queria fazer a corte. Educadamente, rejeitou, mas o pai insistiu que
não negasse, era a oportunidade da vida dela, um marido à altura e de boas
famílias. Ficou destroçada. Sabedor dos planos, Alfredo jurou que ficariam
juntos, nem que tivessem de fugir, tinha tios no Brasil se preciso fosse. Passados dois meses,
obteve passagens num paquete, fugiriam em segredo numa noite de Fevereiro.
No dia
aprazado, Alfredo juntou a trouxa e os bilhetes e discretamente zarpou para
Sintra na bicicleta do irmão. Passando a Volta do Duche, mal reparou num cão
que se atravessava, e batendo com a cabeça na laje, teve morte imediata. Para ele, as
passagens nem de ida seriam. Foi por Amália, a criada, que Júlia
soube da notícia, um grito suspeito, e estranho para a serviçal, antecedeu uma
correria para o quarto, a libertar lágrimas por um futuro perdido e agora
incerto.
Nos dias
seguintes, para espanto da família, fechou-se no quarto, ao tenente,
passou a evitar. O doutor Simplício receitou caldos de galinha e sol da praia,
mas Júlia definhava, amordaçada pelo segredo de um amor desfeito, condenada a
ver escapar a felicidade, só, escutando o sino em S.Martinho.
Os anos
passaram. Com o tempo dedicou-se a causas filantrópicas, a morte do velho
Adolfo deixou-a respirar, solitária, mas consigo mesma, as noites de insónia
povoadas pela imagem de Alfredo, o noivo improvável que o destino tornou
impossível. Rodolfo casou com uma francesa, por alturas da revolução de 74, já
general, foi compulsivamente aposentado, morreu nos anos oitenta.
Sintra
foi-lhe vendo passar os anos, imutável, petrificada como ela, moira encantada
na velha casa da R. da Pendôa. Alice, uma sobrinha solteirona, tomou conta dela
no ocaso da vida, reiterada e frequente, uma flor cobria a campa de Alfredo
em S.Marçal. Breve se lhe juntaria, e aí sim, nenhum poder castrador os poderia apartar.
Júlia lia,
pintava à janela, captando as patines de Sintra, os nevoeiros e as
brumas, com Alfredo dentro delas, por certo, pedalando na bicicleta. Já passados os
oitenta, certo dia chamou Alice indicando-lhe uma gaveta no psyché e revelando-lhe ali estarem as
suas últimas vontades, e num armário que só no dia que morresse deveria abrir,
a roupa com que seria amortalhada.
Uma
madrugada fria, em 2012, sentiu uma bicicleta rolando lenta no lajedo exterior,
um assobio familiar não lhe deixou dúvidas. Sorriu, e enfim partiu com Alfredo,
que esperava, com os amarelecidos bilhetes do paquete na mão. Estava
serena e em paz, quando pela manhã Alice a viu deitada na cama de toda a vida.Fechou-lhe
os olhos azuis e claros, tão belos como dantes, aberta a carta com as
últimas vontades, dentro estava a chave de uma mala, guardada no quarto do
fundo, e um A grande, escrito com tinta preta. Em baixo, umas palavras: “Com estas vestes te receberei”.
A misteriosa
mala continha um belo e branco vestido de noiva, a jura de um amor não traído,
avaramente negado em vida. De branco e de noiva, e com um bouquet de camélias entre as mãos, partiria ao encontro de Alfredo,
que há anos esperava na bicicleta, para a boda que agora ninguém impediria.
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