terça-feira, 27 de novembro de 2012

O Anjo de Portugal


Prestável, o groom do Hotel Borges abriu a porta, posto o que o vulto de sobretudo e chapéu preto perguntou pela hóspede do 308. O pai ou um tio, pensou. Ar pesado e chapéu  enterrado, um carro ficou esperando à porta da Brasileira. Era sábado e Lisboa dormia, com as famílias a banhos em Sintra e na Parede. Contactada pelo telefone, uma voz mandou subir o visitante que trazia uma garrafa, um vinho do Dão, descortinou o groom de soslaio, antes de o ver entrar no ascensor para o segundo piso.Com o coração a palpitar, Mercedes abriu a porta, olhando a ver se havia alguém no corredor e mandou entrar, segurando-lhe o sobretudo e chapéu. Confidenciara a António Ferro o desejo de o conhecer pessoalmente, e ele correspondia, numa altura que a Garnier não o largava um segundo. Raramente tinha encontros mundanos, eremitando no Estoril ou em S. Bento, mas os agradáveis passeios com a francesa no Vimieiro haviam-lhe devolvido alguma juventude, comprara mesmo um fato de linho, e botas novas. Terminado um chá com Christine, a carta ardente da frágil admiradora levou-o directo para o Chiado para aí terminar o sábado.
Mercedes Feijó já lhe havia escrito exaltadas cartas de apoio, que, sem responder, guardara expectante. O doutor Salazar, já nos sessenta, provocava-lhe fascínio, os cabelos esbranquiçados conferiam-lhe o ar fascinante e seguro de um anjo da guarda, protector e vigilante. Recatado mas não abstinente, cedia agora à terrena e carnal tentação de macho. Os mexericos sobre a sua misoginia divertiam-no, lembrando divertido a sua primeira vez, seminarista em Coimbra, com a Felismina. O Manuel, hoje cardeal, ficara de guarda, enquanto ardendo em fé penetrava os húmidos desígnios de Deus. Mercedes trouxe dois copos e sentou-se a seu lado na poltrona, enquanto, tirado o casaco, ele abria a garrafa:
-Então a Mercedes costuma escrever? Saiu ao seu pai por esse lado, mas no resto é a sua mãe tal e qual- galanteou o visitante, brindando, e recordando a sueca, agora viúva de António Feijó.Leitão de Barros apesar de ter olhos apenas para os cenógrafos da Tóbis, gabara-lhe a beleza num jantar da União Nacional.
 -O senhor professor conheceu-a? Que memória formidável, eu…
 -Chame-me António- atalhou, pousando-lhe a mão sobre a perna, que ardia debaixo dum vestido de chantung.Mercedes ruborizou, aquela intimidade com o Presidente do Conselho, a quem só raras vezes vira e ouvia com voz firme na Emissora Nacional, deixou-a entorpecida, bebendo o Dão de um trago só, e lembrando depois que nem apreciava vinho.
 -Muitos pensam que sou um bota-de-elástico, mas até aprecio um bom teatro, e boa música,  zarzuelas sobretudo. Alguns mal intencionados zurzem contra mim porque que prossigo sem desvio a missão que a Providência me confiou, mas ignoram o que é ser português das quinas e cristão temente a Deus.O Norton de Matos ladra muito, mas é um enfatuado. Sabe que usa ceroulas, o biltre? -confessou, divertido, oferecendo-lhe a mão com que ferreamente governava a Nação.
 -Sr. Presidente, eu…
 -António…
 -António, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Desde há muito que guardo todos os seus discursos, e arquivo as suas fotos. Como pode ser tão generoso e entregar-se sem nada pedir em troca, quando podia ter uma esposa e filhos que por certo o adorariam, você que é a locomotiva do nosso Portugal…-Já o vinho descomprimia os gestos e libertava o verbo, e uma tímida festa acariciava a cabeça de António, o timoneiro, que, silencioso e sem pressa ia enchendo outro copo. Vaporosa e nas nuvens, Mercedes saiu por instantes, prometendo regressar rápido, descontraído, o Presidente do Conselho aproveitou para deitar um olhar pela janela. Um carro guinava para a António Maria Cardoso com um jovem algemado no banco traseiro. O Agostinho Lourenço não dorme, pensou, entre o prazer pela conquista próxima e a visão de mais um ingrato, em boa hora apanhado pela zelosa polícia. Enfim, Pátria e prazer escrevem-se com a mesma letra, murmurou para consigo mesmo.
Do quarto contíguo chegou Mercedes, entretanto,  vaporosa, exibindo a lingerie negra e sedosa, um soutien rendado realçando os generosos seios, e pronta a, em ditadura governá-lo agora. Salazar sorriu, com o ar seráfico de sacristão em dia de procissão, ela envolveu-o e puxou-o para a cama. Já aliviado do fato e das ceroulas de linho- afinal ele também usava, zombou Mercedes, gulosa - o dedicado servidor da pátria virava agora obediente servo, possuído por mãos providenciais e aveludadas. Na vizinha PIDE e à mesma hora, outro servo era dominado também, mas por fogosas e menos aveludadas mãos.
Uma hora mais tarde, com o chapéu enterrado, saiu do hotel, em silêncio, deixando o groom a olhar de lado, avaro, o velho nem um centavo deixara. Mercedes, esfomeada e satisfeita, ligou para a recepção, quase de seguida, a encomendar uma  revigorante ceia, a Almira rebentaria, quando lhe contasse, à hora do chá, na Ferrari.
No dia seguinte, ainda o baton vermelho e a pele de Mercedes se lhe não desvanecera, António, solene e patriarcal, discursava num Encontro Nacional de Professores de Moral: Portugueses: Ensinai a vossos filhos o trabalho, ensinai a vossas filhas a modéstia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei deles ao menos cristãos”.
Cristão, e abnegado santo, condestável da castidade, no sábado seguinte de novo o anjo de Portugal voltaria à sacristia do Borges, onde, peregrino, acenderia nova vela…                                              

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