Novembro de 1991. Em Díli, António
despedia-se no aeroporto de Maria, a esposa que enviava para
Portugal, fugindo ao regime indonésio, os amigos nas montanhas precisavam de
ajuda e para ele não era tempo de partir ainda. Em Lisboa, familiares acolheriam
Maria até que chegasse, Timor sangrava nas mãos do ocupante e o mundo calava,
adormecido. Uns dias depois, a 11, faleceu um companheiro, abatido em recontros
com os indonésios, e a 12 António e mais amigos acompanharam o seu funeral, no cemitério
de Santa Cruz. O ambiente era tenso, e ao levantar de voz de um
jovem contra os ocupantes, os indonésios dispararam, abatendo à
queima-roupa dezenas de timorenses. António fugiu, assustado, e pelo caminho
tropeçou, ao tombar, sentiu cair-lhe em cima um corpo, antecedido de um tiro.
Deixou-se ficar, como se estivesse morto, e até que parassem os disparos, e assim
ficou uma meia hora, com o cheiro a morte envolto em sangue. A
dois metros, morto, um jovem segurava as flores que levara para o
enterro.
Mal o tropel acalmou, António
escapuliu do cemitério, e durante a noite, a pé, fugiu para as montanhas,
para junto dos amigos das FALINTIL, não estava seguro em Díli. Os indonésios
deram-no como morto, sem curar de o procurar, em Lisboa, Maria
recebeu a notícia da morte do marido, no meio duma lista de baixas.
Durante os oito anos seguintes, António sobreviveu
nas montanhas entre os guerrilheiros, as aldeias proporcionavam protecção, o
drama timorense arrastava-se e parecia não ter fim.
Preso em Cipinang, Xanana era o Mandela da Ásia, o Nobel a Ramos Horta e
Ximenes Belo ajudava a dar notoriedade ao drama. Só em 2000 a Indonésia retirou,
e António finalmente desceu o Ramelau.
Em Lisboa, com o
passar dos anos, Maria acabou casando com Jorge Carrascalão, um patrício, de
quem teve um filho. De António, nem uma foto sobrara, e a vida continuou.
Auxiliar numa escola, de Timor, apenas lembrava os cheiros, as montanhas, e uma vaga recordação de António, que um filho e Jorge com o tempo abafaram.
Depois da guerra, António ingressou nas forças armadas timorenses e chegou a coronel. Um dia, já em 2012, veio pela primeira vez a Portugal, integrado numa missão militar. Sem ter voltado a casar, procurou Maria, só o Serafim, um primo que há muito não via por cá vivia, ao dar com ele empalideceu e julgou ver um fantasma, há dezoito anos que o faziam morto, naquela manhã fatídica. Depois dos abraços, e a medo, António perguntou pela companheira:
Depois da guerra, António ingressou nas forças armadas timorenses e chegou a coronel. Um dia, já em 2012, veio pela primeira vez a Portugal, integrado numa missão militar. Sem ter voltado a casar, procurou Maria, só o Serafim, um primo que há muito não via por cá vivia, ao dar com ele empalideceu e julgou ver um fantasma, há dezoito anos que o faziam morto, naquela manhã fatídica. Depois dos abraços, e a medo, António perguntou pela companheira:
-E Maria….
Serafim, baixou os olhos, sondando
o que saberia ele da esposa:
-Não voltaste a falar-lhe?...
-Perdi-lhe o rasto. Nunca pude
vir a Portugal, mas sei que fui dado como morto nessa altura. De certa forma,
foi o que me valeu, para sobreviver nas montanhas…
Serafim fez uma pausa, e pondo-lhe
a mão no ombro, esclareceu o primo:
-Maria fez luto por ti uns
anos, mas depois, voltou a casar. Tem hoje um filho, com 14 anos, e mora aqui
perto de Lisboa. Olha, trabalha na mesma escola do filho, o meu também lá anda…
António fez silêncio. As
cicatrizes do corpo não pusera cobro às da alma, um mundo em guerra e
vários mares os separaram e o destino fizera o resto. Para os vivos, António
estava morto, mártir em Santa Cruz. A vida que ressuscitara Timor, para sempre o separara de
Maria.
-Posso vê-lo? -pediu
António, num turbilhão de emoções.
-Claro. Olha, logo à tarde vou
buscar o José Alexandre à escola. Maria estará lá, geralmente ela sai com o
filho e vão juntos para casa, vou-tos apresentar.
-Não! - António tinha
outra ideia - não quero que saibam quem sou. É tarde para desenterrar o passado. O que teve de ser,
assim deve ficar…
Pela tarde, com António sem uniforme militar, foram até à escola. Vários miúdos brincavam no pátio, a um canto, dois moços de
feições mauberes mandavam mensagens pelo telemóvel, ao longe, uma senhora, de
cabelo esbranquiçado chamava-os. António sentiu um frémito na espinha. Era ela,
era Maria. Mais velha, mas a mesma beleza de há vinte anos. No lado oposto da rua, António
recolheu-se atrás de uma árvore, Serafim dirigiu-se aos jovens e levou-os até
António:
-Olhem rapazes, este é um amigo
meu de Timor, o coronel António, cumprimentem-no!
Admirados por
conhecerem um militar de Timor, cumprimentaram, mais curioso, o filho de Maria, quis
saber coisas:
-És amigo do Xanana?
-Sim, sou, ele agora está mais
gordo… E é do Benfica, sabiam?...- melancólico, António olhou fixamente o
miúdo, poderia ser seu filho.
-Alguém em Portugal te
conhece? -quis saber o garoto, nunca ouvira os pais ou Serafim falar
deste António, militar em Timor, e pelos vistos importante. António fez uma
pequena pausa, e rematou sorrindo:
-Não. Ninguém! -com os
olhos, cúmplice, mirou Serafim, e em silêncio ficaram olhando o céu, ameaçava
chover para os lados de Sintra.
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