segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Vaca



A cerca ficara mal vedada, bem lhe parecera que a rede estava periclitante. O Seca-Adegas, com a pressa dum tinto no Miranda, despachara o assunto em três tempos, pelo que Virgílio antevia já problemas com o Acúrcio, há vinte anos que não se falavam por causa dum cavalo, vinha aí trovoada pela certa.
Na quinta em Bolembre, Virgílio cultivava galinhas e hortaliças, tudo para vender na praça ao fim de semana, e na Malveira à quinta, com os filhos criados, para ele e para a Micas chegava. Pior era a vizinhança. Com o Acúrcio era impossível falar. Certa vez, por uma levada de água, quase se mataram, não fosse o Zé de Fontanelas e a coisa teria metido sangue. Saloio que se preze é cioso do seu canto, e nisso, Acúrcio e Virgílio eram muito parecidos, daí as quezílias e os ódios que lhes infernizavam a vida e a das famílias. Café onde um fosse, o outro não entrava, e se um comprava um porco o outro tinha de comprar dois, tudo devidamente relatado na tasca do Miranda.
Virgílio tinha o seu gado, que depois vendia para o talho, o leite ele mesmo distribuía. Com o Ernesto formado e a viver em Lisboa, para ele e a Micas, bastava. Sem vícios, que a diabetes não perdoava, os dias eram da feira para casa, e da casa para o Miranda.
A rede da cerca ficara efectivamente solta, quando apanhasse o Seca-Adegas lhe daria a coça. E para mal dos seus pecados, das suas vacas, faltava-lhe uma, bem a viu a pastar na propriedade do Acúrcio, já misturada com as dele. Contrafeito, chamou por ele, a reclamá-la:
-Ouve lá, não te chegam as tuas, agora também tens de pilhar as vacas dos outros, minha anta? Passa para cá já a minha vaca, ou tenho de ir buscar a Flaubert?
O Acúrcio, vermelho só de o ver, veio do celeiro de mão na anca, a barafustar com o Virgílio:
-O que queres, unhas-de-fome? Mete-te na tua vida, e deixa os outros em paz. Ou queres que te parta a cara?
-Passa mas é para cá a minha vaca, e enquanto estou calmo, se não…
-Qual vaca? Estás mas é doido, as vacas que ali estão são todas minhas, vai pentear macacos!
Furibundos, já quase chegavam a vias de facto quando chegou o Ernesto, filho do Virgílio, a pedir calma. Mais ponderado, achando aquelas guerras absurdas, mas sem desapoiar o pai, chamou-o à parte, para se ver da melhor maneira de recuperar a Mimosa.
-Isto com violência não vai lá, pai, depois ainda perde a razão. O melhor é falar com um advogado, para arranjarmos maneira de recuperar a vaca.
Rosnando, a caminho do Miranda, onde o Seca-Adegas jurava a pés juntos, mas sem conseguir fazer um quatro, que a rede ficara segura, lá anuiu, procurariam o dr. Anselmo, em Sintra, era um advogado dos antigos, conceituado, ganhara uma causa ao Domingos por causa dumas partilhas, a vaca voltaria, a bem ou a mal.
No dia seguinte de manhã, Virgílio lá apareceu no escritório do doutor Anselmo, com mais de quarenta anos de barra, uma secretária de bilros, clássica, com ele um estagiário, o Afonso, licenciado recente e dedicado aos processos. Ressabiado, lá expôs a situação: a vaca era dele, toda a gente em Bolembre o podia atestar, tinha uma mancha preta entre os olhos, e todos sabiam que o Acúrcio só tinha três animais. O dr. Anselmo, dando umas passas no cachimbo, ouviu, matutando, enquanto Afonso tirava notas. No fim lá sossegou o Virgílio:
-Ó homem, isso nem tem discussão. Com as testemunhas e o recibo da compra, não tem de saber. A vaca é sua!
Mais descansado, lá saiu a contar ao Ernesto, o sacripanta do Acúrcio havia de ver, ainda havia de pagar indemnização e ser preso, por roubo, mais descansado, até pagou uma rodada no Miranda.
No dia seguinte, no escritório do dr. Anselmo, outro cliente marcou presença. O Acúrcio, aconselhado pelo compadre a consultá-lo, queria saber dos seus direitos sobre a vaca, o advogado ouviu-o, dando uma baforada no cachimbo:
-Pois é como lhe digo doutor, apareceu-me uma vaca no meu terreno, não tem identificação, que é obrigatório, e o meu vizinho anda a dizer que ele é que é o dono, o que é que o doutor acha?
-Não se preocupe, senhor Acúrcio- seguro do Direito, sossegava o cliente- sendo assim, nem tem dúvidas: a vaca é sua!
-Tirou-me um peso de cima, doutor! Trate-me do assunto, e deixe estar, que eu sou de boas contas….
-Não se preocupe, não se preocupe…- contas eram com a Cecília, lá fora. Voltando ao cadeirão, Afonso, que igualmente assistira à conversa, coçou a cabeça, era a história da véspera, da vaca de Bolembre.
-Ó doutor Anselmo, o senhor ontem disse ao sr. Virgílio que a vaca era dele, hoje diz a este senhor que a mesma vaca é dele. De quem é a vaca, afinal?
Sorrindo matreiro, o velho tribuno deu uma palmadinha nas costas do colega, ainda verde, e rematou, sacudindo o cachimbo:
-Meu rapaz, mas tu não vês que a vaca é nossa?...

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