Uma da manhã. O vigilante dos Paços do Concelho fechava
as portas de madeira e desligava o projector que iluminava o torreão. Em volta,
quase ninguém circulava, as chaminés do paço acompanhavam o lento adormecer em
noite de lua cheia, cintilante, com o burgo deserto e já em silêncio. Repentina
e silenciosamente, o leão de pedra, alva sentinela do vetusto edifício, iluminou-se,
parecendo uma lâmpada de néon. Do branco-pedra passou a azulado, os olhos,
ganhando vida, ficaram vermelhos, deu um salto resoluto e postou-se, majestoso,
frente à Tasca do Manel. Rugindo, e abanando a cabeça, sacudiu-se e caminhou na
direcção da estação.
Shintara, o leão de pedra, havia sido em tempos um vizir
árabe a quem uma feiticeira transformara em felino, há mais de mil anos. Durante
o dia, hirto e petrificado, contemplava as pessoas atarefadas entrando e saindo,
cidadãos tratando de assuntos, funcionários ocupados com processos, vereadores
marcando reuniões, os motoristas encostados às paredes. À noite, ganhava vida,
que durava até ao nascer do sol, quando inexoravelmente voltava ao pedestal,
cumprida a sua missão: fazer justiça a quem a procurara sem resposta, e
proteger os fracos, como rei da selva.
Naquela noite, tinha várias injustiças para reparar.
Muitas pessoas, e até os jornais haviam já falado dum leão nocturno,
deambulando em Sintra, mas como loucos ou ébrios foram tratados. Leão em Sintra,
só o Luís Duque, replicava o Manel da tasca, aviando uma bica.
Resoluto, Shintara subiu a rua. O último comboio partira
já, só um táxi esperava algum tardio cliente. A primeira paragem foi no Morais.
Uma rajada de vento dois dias antes soltara o galho de um plátano sobre o carro
de Sandra, faltara sinalização advertindo do perigo, a câmara que não, não
podia indemnizar, fizesse uma exposição. Sandra ganhava o ordenado mínimo num
escritório da Abrunheira, o seguro não cobria os danos, e tinha de trabalhar
todos os dias, havia a creche do Ruca para pagar. Shintara, decidido, fintando
dois polícias, rugiu, bandeou a farta juba, e como por milagre, o velho carro
em segunda mão ficou novo e sem riscos, os vidros repostos, os galhos da árvore
ameaçando queda, cortados obviando novo acidente. Esboçando um ar feliz, fechou
os olhos e seguiu em frente, a primeira missão estava cumprida.
Na Portela de Sintra, morava Dolores, funcionária da
Câmara. Fazia quinze dias que Miguel caminhava para lá em busca duma licença
que permitisse a festa da escola do filho, fazia parte da comissão de pais.
Dolores estava renitente: era o número de contribuinte, o IRS, o certificado
dos bombeiros, a licença de ruído. Passaria a data, e a festa sem licença. Dolores
arrastava-se na repartição, farta de trinta anos de câmara e toneladas de
papel, restava-lhe o prazer de levantar problemas, pedir mais um impresso, cobrar
mais uma taxa. Shintara galgou a varanda de um pulo só, era um primeiro andar
antigo, e focando os olhos na cama onde ela e o marido dormiam, rugiu zangado,
levantando-se nas patas dianteiras do lado de fora da vidraça. Só os dois o
viram e ouviram, tinha o dom de só se deixar ver a quem queria, aterrados ante
a fantasmagórica visão, fugiram para a sala aos gritos. Shintara fixou Dolores,
encolhida a um canto, em camisa de noite, e sentenciou, gutural:
-Se alguma vez mais
criares dificuldades para vender facilidades, a fúria de Shintara cairá sobre
ti, imprestável! Faz o teu trabalho e serás reconhecida! -deixando a velha funcionária a
correr em busca de um Valium e o marido fugindo para a cozinha a emborcar uma
aguardente velha.
A última paragem foi em Lourel. Fernando metera um
projecto para ampliar a casa onde vivia, a mãe, idosa a quem não queria
internar num lar, precisava de um quarto, simples, familiar. O arquitecto da
Câmara levantava problemas: a volumetria, o PDM, a legenda. Shintara entrou na vivenda
onde o arquitecto morava e dormia, roncando, com a televisão ligada. Desta
feita, por hipnose fez aparecer em sonho ao dorminhoco arquitecto a visão de
uma família feliz na casa ampliada, a avó com os netos aos pés, um sorriso de
felicidade, enquanto ele, dormindo, inconscientemente esboçava um sorriso e com
a mão ensaiava o que parecia uma carícia a um deles na ponta da almofada.
A noite ia longa. Um sem abrigo ajeitou o caixote de
cartão e a placa de esferovite que lhe servia de colchão, a lua cheia reflectia
a sombra do felino no empedrado. Era tempo de voltar, depressa clarearia, os
primeiros funcionários da manhã rotineiramente chegariam para mais um dia de
guias e certidões, arrastando-se como zombies
flagelados pelos cortes e perda de direitos. De volta à câmara, pulou para o
pedestal, rugiu uma última vez, e lentamente foi ficando azulado, prateado e
logo branco, alvo, orgulhoso.
Pelas sete horas chegaram as senhoras da limpeza, o Manel
na tasca aqueceu a máquina do café e o comboio voltou a cumprir partidas e
chegadas.
Á porta de casa, Sandra, boquiaberta, ria e chorava ao
mesmo tempo, carro renovado, despesa riscada, Dolores chegou simpática e
pontualmente abriu o guichet,
prestável, o arquitecto requisitou o processo das obras da casa de Fernando e,
orgulhoso, lá apôs um parecer favorável. Shintara, interiormente regozijava,
logo tornaria à sua ronda justiceira e nunca completa, nova noite, novo
périplo. Nessa tarde ainda, sentiu uma festa na cabeça, era Miguel que
apressado nele se amparava, ia buscar a licença para a festa da escola. Isenta
de taxas.
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