domingo, 23 de setembro de 2012

O Doutor em Construção

Indeciso entre Filosofia e História, militando na senda de amanhãs libertadores, Jaime acabou ingressando em Direito.À rotineira repetição dos feitos pátrios, que um curso de História propiciava, apesar de apaixonado pelo tema, atraiu-o antes a visão do advogado à Perry Mason, onde a meio do processo entraria a prova decisiva que arrasaria a acusação e salvaria o inocente da prisão. Ingénuo, mas puro, nos finais de setenta lá ingressou na Clássica, mausoléu frio e sem alma, ainda arrefecendo de acaloradas disputas entre fascistas e maoístas, as pinturas de Ribeiro dos Santos e Maximino de Sousa, à moda de Mao e Lenine, saudavam os heróis da casa, bastião do antigo regime e balão de ensaio para futuros mestres da lei.
Direito era uma coisa anódina, de classe, pouco aberta ao mundo, cheia de “de cujus”, e “quid juris”, e manuais gongóricos, teorizando um mundo virtual onde por vezes até pessoas cabiam. A meio, pensou desistir, impregnado de Marx e Gramsci, de Che e Neruda, as miúdas mais giras estavam em Letras, só a Manuela, olhos verdes, res nullius doce e sem namorado, o fez ir ficando. Estudando juntos na biblioteca, aos poucos trocando olhares por entre a sebenta de Direito Civil, nunca como nesses dias acharam tão acertados os direitos reais de gozo, amigos pela usucapião do tempo, amantes por vontade expressa, em contrato-promessa primeiro, e com execução específica depois. Ao segundo ano, assumiram a relação, as mãos entrelaçadas nas aulas do professor Marcelo seguiam nem sempre atentas o estudo dos sistemas políticos, Jaime e Manuela concordavam, democratas nas ideias e ditadores no amor. O professor Marcelo, atrás da barba mefistofélica, ria divertido, e no dia da oral de Constitucional sendo Jaime o último do dia, convidou-o até no final para jantar. Um bife na Trindade, a coroar o suado 14, já depois das dez da noite, premiou o promissor constitucionalista.
Ao terceiro ano, desistir estava afastado, as coisas com a Manuela estavam firmes, casariam no fim do curso, ela com ideias no CEJ, futura juíza, ele entre a diplomacia e a barra, tinha dois anos pela frente. As paredes antes frias, eram agora familiares, muitos envolviam-se na política, à esquerda e à direita, e os mais velhos, na fase da gravata, iam ostentando antecipado o epíteto de doutor que com o tempo viraria nome próprio. O caderno na mão e a sacola do primeiro ano viravam agora pasta de pele, camisas com botões de punho e óculos sem aros, às barbas hirsutas e revoltas sucedia o penteado tratado do jurista em construção. Artigo a artigo, diploma a diploma, ia-se fazendo o caminho iniciático de cavaleiro do Direito. No quarto ano, integrou uma lista para a associação académica, a morte de Sá Carneiro e a crença cada vez mais ténue em soluções de ruptura, levaram-no ao PPD. Santana Lopes, veterano e da extrema-direita, também aderiu, e aos poucos, o país arrefecia do atribulado PREC. Extinto o Conselho da Revolução, no arco de partidos do centro se desenharia o futuro. Filiou-se, foi a um congresso, Manuela, equidistante, encafuou-se nos códigos e refinou o aspecto, a teennager inconsciente ia-se apagando à medida que chegava o dia em que um canudo dourado e a caricatura do Zambujal no livro de curso premiariam os novos doutores, qualificados quadros, esperançosas reservas para grandes voos, no foro e na política. No quinto ano, pela primeira vez Jaime envergou traje académico, excrescência fascista banida nos anos setenta, e com o tempo recuperada, e de chicote em riste, veterano, praxou acabrunhados caloiros, obrigados a flexões à porta do anfiteatro.
Quase doutor, deixou os bares do Cais de Sodré, substituídos pelo Stones e o Ad Lib, frequentou palestras na Ordem, passou a ir de carro para as aulas, abandonando o 31 para Moscavide, com cheiro a suor. Aos mais novos, falava dos mestres como de tias velhas mas estimáveis, feras por vezes, “crânios” brilhantes, outras, todos com características distintas: os perdigotos voadores de Jorge Miranda, a orelha de Sousa Franco, os duzentos quilos da Magalhães Colaço, o velho Soares Martinez, lenda viva de quem se contavam histórias de alunos que aos seus exames tinham sobrevivido. Finalmente, já com o casamento marcado numa quinta de Azeitão, num dia quente de Julho ele e Manuela acabaram o curso, ela primeiro, com melhor média, ele depois, escritório em perspectiva, uma avença num banco na calha, com mais duzentos, nesse ano engrossariam o restrito clube dos senhores doutores. Longe ia o dia em que Jaime atravessara aquele átrio ladeado de vitrinas com pautas e notas avaras e angustiado hesitara sobre o passo a dar. Com o tempo, percebeu que Perry Mason jazia poeirento em velhos filmes sem cor, que mais que a Justiça interessava o Direito, e mais que o Direito estar com quem o aplica e escreve. Loquaz, a sociedade abriria portas aos moldados, e, tolerante, suportaria os críticos, mantendo assim no ar o ténue perfume da democracia e pluralismo.
Passaram trinta anos. Manuela é hoje uma respeitada desembargadora da Relação, com Jaime teve três filhos, um deles, recém-acampado do Rossio, talvez siga Direito, para já, de mochila, vai com a namorada ao Sudoeste. Jaime, uns quilitos a mais, é o poderoso chefe de gabinete dum ministro, depois de tranquilo deputado por Faro por mais de dez anos. Há dias, acompanhando o ministro a um colóquio, reentrou pela primeira vez em anos no átrio de Direito, e sorriu. Lá estavam ainda as vitrinas, os baixos-relevos do Almada, o cheiro familiar e austero. 
Anos antes, ali entrara querendo salvar o mundo. Felizmente e a tempo, conseguira salvar-se a si próprio.

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