“O meu desejo é
ver-me entre quatro serras, dispondo de algumas leiras próprias, umas botas
grosseiras e um chapéu de Braga” – terá dito Alexandre Herculano em plena fase de negação
e frustração política, acometido do desejo de retirar-se definitivamente para
Vale de Lobos, ancorando-se em porto tranquilo e seguro. Dono de grande energia
e carácter, eleito deputado por Sintra nas eleições de 1858, apenas poucos dias
depois renunciou ao lugar, por entender não ser razoável representar um círculo
onde não vivia, nem os eleitores o conheciam, convicto de que nenhum círculo
eleitoral deve escolher para representante um indivíduo que lhe não pertença e
não conheça as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças. Dirão
alguns, hoje, e numa altura em que se aproximam eleições autárquicas, que para
defender os interesses de Sintra basta metê-la na alma, puxar pelos projectos,
falar com as gentes, que o marketing, o facebook ou a televisão farão o resto
na aritmética do assalto aos lugares. Porém, como escreveu Herculano em carta
aos seus eleitores, por ocasião da renúncia ao mandato, é entre filhos da terra
que os círculos devem escolher os seus representantes, com a redução dos
grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir à
restauração da vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país,
e de garantia da descentralização administrativa, sendo esta a garantia da
liberdade real.
E acrescentou: é
honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e
morrer honrado! Para ele, só a eleição de campanário era o sintoma e o
preâmbulo de uma reacção descentralizadora e condição impreterível da administração
do país pelo país, e esta a realização material, palpável, efectiva da
liberdade na sua plenitude. “Para obter
este resultado, é necessário que a vida pública renasça. É preciso que o país
da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das
províncias acabe com o país inventado nas secretarias, nos quartéis, nos
clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo.
Dantes, os frutos que dá o predomínio da centralização, supunha-se colhê-los o
rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros”,escreveu.
A carne é fraca, porém, e décadas depois, pululam
autarquias pejadas de paraquedistas com longevidade de mandatos, para muitos
dos actuais autarcas, insuficientes até, agarrada que lhes está a máscara à
cara depois de muitos anos a trabalhar pelo “progresso”. Sejam quais forem as
nossas aspirações quanto ao futuro, vivemos no presente, e deixámos que os
partidos e os insectos que em seu torno saltitam, invadissem a esfera pública
qual hemorragia pestilenta e estranha, assim descurando as gentes das terras,
os que lhe conhecem os ventos e as marés, o tempo das colheitas ou da apanha
dos frutos. Que lhes interessa o eleitor anónimo que nunca viu o candidato ou
tão pouco sabe quem é o paraquedista que lhe caiu no quintal ou varanda, e tão
pouco este sabe o nome das localidades onde moram os eleitores, o dos rios que
atravessam as suas terras ou as datas das suas festas seculares?
Herculano definitivamente, decidiu-se e escreveu aos
eleitores a renunciar ao seu mandato de deputado por Sintra. O seu apreço por
ela impunha-o, não seria procurador por Sintra, ao menos seria regedor da sua
consciência. Os anos passaram, e Sintra, hoje desamparado cais duma amálgama
suburbana e sem identidade (ou com identidades) prepara-se para de novo se
render aos candidatos da imagem, que não saberão onde é Galamares ou Pernigem,
mas que a Sintra farão loas e para as câmaras e fotos se hão-de atafulhar de
queijadas a mostrar o quanto prezam a vila e suas delícias, depois de
rapidamente lerem umas linhas na wikipédia. Afinal, numa terra onde há quarenta
anos não há maternidade e ninguém nasce a não ser nalguma ambulância,
identidade é cada vez mais coisa a enfraquecer ganhando a cor sépia do passado.
A televisão une, as redes sociais promovem e os pára-quedas hão-de continuar a
lançar novos aventureiros, de quem mais tarde poucos recordarão o nome, mas que
em Sintra e de Sintra se servirão. Herculano, esse, amargurado, descansa
esquecido à sombra do campanário, com a razão que os sem razão lhe não
reconheceram. Não haverão já sintrenses que possam governar a sua terra?
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