domingo, 6 de janeiro de 2013

Os trabalhos de casa



Julho de 1966. Mais uma temporada em Galamares, para ida a banhos na Praia das Maçãs. No café do Alcino, voltavam as tertúlias e a jukebox com os sons vindos de fora, para gáudio dos mais novos: the Animals, Bob Dylan, The Beatles, Neil Young.

Ao Alcino nada escapava. Além de dono da pensão, vendia bebidas no salão em dias de cinema, e em ano de Mundial, apostou mesmo numa televisão, onde a troco de dez tostões se poderia ver e aplaudir o Pantera Negra e a epopeia dos magriços, que iriam  infligir novas Aljubarrotas, rematando com o pé que lhes viesse mais à mão. A ligação à Eurovisão nem sempre era fácil, mas lá surgia, saudada por palmas de alívio.

Como em muitos outros anos, José Gomes Ferreira veraneava na casa da Sanfanha e lá poisava também para o café matinal, apreciando o fresco da esplanada e escrevinhando em pedaços de papel. O Mário Dionísio deixara já a casa do Zé da Quinta, no Torrado, terminada mais uma legendagem de um filme para a Tóbis e editada a Imitação dos Dias, ia congeminando poemas novos, poeta militante fixado no futuro.

Galamares era um pequeno mundo. No salão, improvisado cinema de fim-de-semana a cinco escudos por dois filmes, a solene abertura dos filmes da Castello Lopes convidava ao silêncio que antecedia o Technicolor. Lá passaram  o Spartacus, Ben-Hur, os 12 Indomáveis Patifes e Cantiflas, e no final de cada sessão, invariavelmente comiam-se nozes douradas na Leopoldina, o guloso e secreto poema de açúcar. Tudo corria sem pressas. Os mais novos caçavam pirilampos à noite e pássaros de dia, sazonais vítimas de  predadores de calções, alternando entre  a fisga certeira ou o visco traiçoeiro. E eram os rajás de pau, os palinos, as colecções de cromos. Um microcosmos de senhores doutores e seus meninos, gentes do campo e aqueles sazonais veraneantes, enchendo uma miríade de pensões e quartos alugados, a apanhar os “ares” de Galamares que os médicos tanto aconselhavam.

José Gomes tinha por perto o Rui Grácio, e o Keil do Amaral, no Banzão. O Salazar ainda mexia, a águas no Vimieiro, por ora era tempo de esquecer a política, saboreando as tardes no hamac de lona, preso à árvore ou a ler e escrever. O Café do Alcino era porém local de peregrinação para o café, enquanto os mais novos saltavam os muros fazendo apostas sobre a marca do carro que primeiro aparecesse.

Naquela manhã, José Gomes chegou cedo e a Mimisa serviu-lhe a bica na esplanada,onde via no alpendre as andorinhas levarem comida às crias, num incessante peregrinar céu fora. Numa outra mesa, a pequena Maria, filha do dr. Brandeiro, habitual veraneante, brincava com um hulla-hoop, aquele senhor de cabelo comprido e esbranquiçado a escrever silencioso despertou-lhe a atenção. Sentindo-se observado, José Gomes chamou-a para perto de si:

-Olá!.... Como te chamas?

-Maria-respondeu, satisfazendo a curiosidade:- o que está a fazer? Os trabalhos da escola?

Homem de letras, porém já não dessas, não desarmou:

-Sim, estou a fazer os trabalhos… mas vão levar muito tempo a acabar, o professor quer muitas letras, senão castiga…

Maria aproximou-se dele, do outro lado da rua a mãe comprava alfaces ao azeiteiro que semanalmente batia as casas dos veraneantes. A folha tinha escritas letras que não entendia, pareciam desenhos:

-Eu já sei a tabuada dos três…- confessou, vaidosa, abrindo três pequenos dedos a exemplificar.

José chamou a Mimisa e pediu-lhe um chupa de morango, a mãe, chegando das compras advertiu-a de que não incomodasse o senhor.

-Não faz mal...-amenizou -olha, estás a ver aqui os meus trabalhos? Acho que vou fazer outros novos. Toma, ofereço-tos, é uma lembrança minha…

Maria pegou na folha de papel e saiu de mão dada com a mãe. Depois de pagar, José Gomes Ferreira continuou o seu passeio pedonal, o ar fresco do pinhal pela manhã abriria o apetite, como era domingo, convidara o Lopes-Graça para almoçar. Já em casa, Maria olhou o papel e guardou-o numa caixa de madeira, dobrado em quatro, o eléctrico para a praia estava a passar e havia que despachar-se, o balde e a pá já estavam no saco.

Maria cresceu, tornou-se médica, e já adulta descobriu a obra do senhor que um dia lhe pagara um chupa e dera uma folha com os trabalhos de casa. Num dia de limpezas, no fundo de um baú guardado no sótão da velha casa, encontrou a caixa com a folha, já amarelecida. Emocionada, leu o conteúdo: Entrei no café com um rio na algibeira/e pu-lo no chão/a vê-lo correr/da imaginação/A seguir, tirei do bolso do colete/nuvens e estrelas/e estendi um tapete de flores a concebê-las.

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