Julho de 1966. Mais uma temporada
em Galamares, para ida a banhos na Praia das Maçãs. No café do Alcino,
voltavam as tertúlias e a jukebox com os sons vindos de fora, para gáudio dos
mais novos: the Animals, Bob Dylan, The Beatles, Neil Young.
Ao Alcino nada escapava. Além de dono da
pensão, vendia bebidas no salão em dias de cinema, e em ano de Mundial, apostou
mesmo numa televisão, onde a troco de dez tostões se poderia ver e aplaudir o
Pantera Negra e a epopeia dos magriços, que iriam infligir novas Aljubarrotas,
rematando com o pé que lhes viesse mais à mão. A ligação à Eurovisão nem sempre
era fácil, mas lá surgia, saudada por palmas de alívio.
Como em muitos outros anos, José Gomes Ferreira veraneava na casa da Sanfanha e lá poisava também para o café matinal,
apreciando o fresco da esplanada e escrevinhando em pedaços de papel. O Mário
Dionísio deixara já a casa do Zé da Quinta, no Torrado, terminada mais uma
legendagem de um filme para a Tóbis e editada a Imitação dos Dias, ia congeminando poemas novos, poeta
militante fixado no futuro.
Galamares era um pequeno mundo. No
salão, improvisado cinema de fim-de-semana a cinco escudos por dois filmes, a
solene abertura dos filmes da Castello Lopes convidava ao silêncio que
antecedia o Technicolor. Lá passaram o Spartacus, Ben-Hur, os 12 Indomáveis
Patifes e Cantiflas, e no final de cada sessão, invariavelmente comiam-se nozes douradas na Leopoldina,
o guloso e secreto poema de açúcar. Tudo corria sem pressas. Os mais novos
caçavam pirilampos à noite e pássaros de dia, sazonais vítimas de
predadores de calções, alternando entre a fisga certeira ou o visco
traiçoeiro. E eram os rajás de pau, os palinos, as colecções de cromos. Um
microcosmos de senhores doutores e seus meninos, gentes do campo e aqueles sazonais
veraneantes, enchendo uma miríade de pensões e quartos alugados, a apanhar os “ares” de Galamares que os médicos tanto aconselhavam.
José Gomes tinha por perto o Rui
Grácio, e o Keil do Amaral, no Banzão. O Salazar ainda mexia, a águas no
Vimieiro, por ora era tempo de esquecer a política, saboreando as tardes no hamac de lona, preso à árvore ou a ler e escrever. O
Café do Alcino era porém local de peregrinação para o café, enquanto os mais
novos saltavam os muros fazendo apostas sobre a marca do carro que primeiro
aparecesse.
Naquela manhã, José Gomes chegou
cedo e a Mimisa serviu-lhe a bica na esplanada,onde via no alpendre as andorinhas
levarem comida às crias, num incessante peregrinar céu fora. Numa outra mesa, a
pequena Maria, filha do dr. Brandeiro, habitual veraneante, brincava com um hulla-hoop,
aquele senhor de cabelo comprido e esbranquiçado a escrever silencioso
despertou-lhe a atenção. Sentindo-se observado, José Gomes chamou-a para perto de si:
-Olá!.... Como te chamas?
-Maria-respondeu,
satisfazendo a curiosidade:- o que está a fazer? Os trabalhos da escola?
Homem de letras, porém já não
dessas, não desarmou:
-Sim, estou a fazer os
trabalhos… mas vão levar muito tempo a acabar, o professor quer muitas letras,
senão castiga…
Maria aproximou-se dele, do outro lado
da rua a mãe comprava alfaces ao azeiteiro que semanalmente batia as casas dos
veraneantes. A folha tinha escritas letras que não entendia, pareciam desenhos:
-Eu já sei a tabuada dos
três…- confessou, vaidosa, abrindo três pequenos dedos a exemplificar.
José chamou a Mimisa e pediu-lhe
um chupa de morango, a mãe, chegando das compras advertiu-a de que não incomodasse o
senhor.
-Não faz mal...-amenizou
-olha, estás a ver aqui os meus trabalhos? Acho que vou fazer outros novos.
Toma, ofereço-tos, é uma lembrança minha…
Maria pegou na folha de papel e saiu de mão
dada com a mãe. Depois de pagar, José Gomes Ferreira continuou o seu passeio pedonal, o
ar fresco do pinhal pela manhã abriria o apetite, como era
domingo, convidara o Lopes-Graça para almoçar. Já em casa, Maria olhou o papel e guardou-o
numa caixa de madeira, dobrado em quatro, o eléctrico para a praia estava a passar e havia
que despachar-se, o balde e a pá já estavam no saco.
Maria cresceu, tornou-se médica, e
já adulta descobriu a obra do senhor que um dia lhe pagara um chupa e dera uma
folha com os trabalhos de casa. Num dia de limpezas, no fundo de um baú
guardado no sótão da velha casa, encontrou a caixa com a folha, já amarelecida.
Emocionada, leu o conteúdo: Entrei no café com um rio na algibeira/e pu-lo
no chão/a vê-lo correr/da imaginação/A seguir, tirei do bolso do
colete/nuvens e estrelas/e estendi um tapete de
flores a concebê-las.
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