Portugal vive hoje uma situação traumática no que respeita às certezas quanto ao futuro, e como tal, capturado num presente donde não o deixam sair, ou sabem para onde levar. Como alguém escreveu, mais que receio do futuro, vivemos a premência dum presente atroz, que não deixa espaço para pensar racional e decidir cerebral. Efectivamente, ninguém hoje se pode permitir fazer planos, sejam de carreira, de conforto ou mesmo da constituição de família, para os jovens, de segurança das reformas, para os idosos e pensionistas, ou mesmo de paradigma, sendo a todo o momento vendido um fado de purgatório como se a sociedade da abundância não nos tivesse sido vendida por quem hoje diariamente a rouba.
E ao mesmo tempo, a ciência anunciando um futuro esperançoso, de genomas descodificados, de carros sem condutor, de energias limpas, de auto estradas da informação, mandando a cada ano as novidades do ano anterior para o campo da arqueologia.
Que papel para as pessoas, padrões de vida e liberdades num mundo em mudança, seja geográfica seja de paradigma? Para os portugueses, enleados num novelo de Penélope, incerta é a esperança e estreito o caminho, como para essa velha Europa finalmente apeada, por força da deslocação do eixo de poder para outras águas e geografias. Espaços esses, que não são casas de liberdade, que espalham computadores aos milhares mas cerceiam neles a informação sobre a sociedade global, que valorizam a economia mas desprezam o trabalho.
O rapto do futuro implica pagar um resgate, não propriamente o do empréstimo, mas o da devolução da esperança e da liberdade. Só assim poderemos quebrar os vidros foscos que reduzem a visão, coarctam o passo e silenciam a voz. Até lá, há que zurzir, indignar, engrossar a revolta e passar a palavra, vitaminar a vontade e resistir às circes uivantes.
Passa este ano o vigésimo aniversário da morte de Natália Correia, mulher de armas sempre armada da mais mortífera delas: a palavra. Contra o rapto do futuro, as suas sábias palavras:
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego,
dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Abramos as portas da História e deixemos passar a Vida.
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