Arredores de
Zamora, 3 de Outubro de 1143.A comitiva do enviado papal, seis dignitários em
liteiras puxadas por mulas vagarosas enfrentava dificuldade em chegar à cidade,
o cardeal Guido de Vico acometido de tosse, maldizia a missão que o Santo Padre
lhe confiara: mediar em Leão o conflito entre Afonso VII, Imperador das
Espanhas, e um insurgente terra tenente portucalense, o impulsivo Afonso
Henriques, seu primo. A noite caía, acolher-se-iam em Toro, um vinho
reconfortante e uma lebre com feijão alimentariam o corpo, que a alma estava
saciada. Perto da estalagem, um grupo de três cavaleiros aguardava a embaixada.
Não parecia gente do Imperador, comentou Giacomo Alighieri, chefe da guarda do
cardeal-diácono, as montadas estavam agitadas e ofegantes, sinal de viagem
longa e recente. Giacomo adiantou-se e depois de troca de palavras com os
forasteiros, voltou para informar o cardeal:
-Eminência, são cavaleiros portucalenses, alegam ter
urgência em falar-vos antes que vos encontreis com o Imperador, amanhã.
Agastado, o
cardeal anuiu, que esperassem na estalagem, depois de se refrescar lhes falaria. Três horas mais tarde e paramentado, enfim
recebeu os visitantes.
-Dominus Vobiscum, o Senhor esteja convosco! Pois
diz-me o meu chefe da guarda que sois portucalenses. Que mister vos trás ao meu
encontro? Amanhã mesmo estarei em Zamora, não poderíeis esperar até lá? –ralhou,
paternal, logo servindo-se duma malga de vinho de La Rioja, o cardeal Molina da Cúria recomendara-lho em Roma.
-Eminência, deixai que nos apresentemos - adiantou-se o
mais velho - meu nome é Egas Moniz,
senhor de Ribadouro, nas terras de Sousa, um vosso criado, estes são Gonçalo e
Soeiro Mendes da Maia, da casa dos Baiões. Traz-nos até vós a necessidade de que antes que vosso sábio juízo se
debruce sobre os conflitos que trazem apartados nosso senhor D. Afonso e o
Imperador, estejais de posse de informações secretas que podem ajudar a
entender a rebeldia de D. Afonso, não produto de imprudência ou teimosia, mas
assente em factos terríveis, até hoje mantidos em segredo - concluiu,
teatral. Intrigado, o cardeal bebeu mais um cálice:
-Pois que factos tão misteriosos são esses,
cavaleiros? Dizei ao que vindes!
-Eminência, escutai com atenção: há setenta e
dois anos, o falecido avô do Imperador, El-Rei Afonso VI e D. Sancho, seu
irmão, lutavam em disputa pelo Reino de seu pai, Fernando Magno. Nesse ano do
Senhor de 1071, D. Sancho foi misteriosamente assassinado, alegadamente sem
deixar herdeiro, o que permitiu ao irmão, o Senhor D. Afonso VI ocupar o trono
que hoje é de seu neto.
-Sim, sim, todos sabemos disso, D. Egas, se são
histórias que me vindes contar…
-Não, Eminência. É aqui que a verdade se deve
sobrepor, para melhor compreender porque D. Afonso Henriques não aceita seu
primo como rei e senhor - adiantou, os outros, com ar grave, anuíam com a
cabeça -É que D. Sancho não foi
assassinado por um nobre de Castela, como se fez soar, antes morreu às ordens
do irmão, D. Afonso, bem como seu filho varão D. Pelayo, cujo nascimento agora
se nega, pelo que El-Rei Afonso VI foi sagaz e usurpador aos olhos de Deus,
assim o sendo também o Imperador, manchado pela infâmia do avô!
O cardeal
pasmava, clamando por provas das graves acusações:
-Medis bem o que dizeis, cavaleiros? O que tendes
para provar tão torpe acusação?
Egas Moniz sacou
um pergaminho dum bornal que trazia a tiracolo, e exibiu um texto escrito a
sangue pelo malogrado D. Sancho, que, à hora da morte, envenenado, ainda teve
forças para acusar o irmão da sua perdição e de seu filho. A chancela e armas
de Leão não deixavam dúvidas sobre a autenticidade do documento, levado para
Guimarães por um fiel aio, Beltan Gutierrez, e há cinquenta anos à guarda do
arcebispo de Braga.
O cardeal
pareceu transtornado, e questionou os cavaleiros sobre as suas intenções.
-Eminência-salientou Egas Moniz-sabemos que é vossa missão apartar os primos
das querelas em torno de seus domínios. Pois bem: convencei com vossa palavra
avisada o Imperador de que deve reconhecer os direitos de seu primo D. Afonso,
e este documento sumirá para sempre nas águas do Duero, assim se sossegando os
reinos.
Guido de Vico
nada disse e recolheu-se, taciturno. No dia seguinte, depois de celebrar missa
em Zamora, reuniu a sós com Afonso VII. Da reunião na catedral nada transpirou,
mas escudeiros notaram que o Imperador estava tenso, tendo mesmo quebrado uma
mesa, praguejando, quando voltou ao castelo. Pela tarde, à hora das vésperas, o
pretendente português, Afonso Henriques e seus partidários chegavam
ruidosamente a Zamora, acompanhados do arcebispo de Braga, D. João Peculiar,
juntando-se-lhes Egas Moniz e os Mendes da Maia. A presença dos portucalenses
na cidade causou apreensão sobre os propósitos da viagem, temendo-se
escaramuças durante os torneios que começariam nesse dia, mal o vinho e a cidra
começassem a jorrar nas tabernas.
Na tarde de 5 de
Outubro, visivelmente incomodado, e na presença silenciosa do cardeal, Afonso
VII e o primo acordavam que o Condado Portucalense se chamasse reino, e Afonso
Henriques rex, deixando os cortesãos
intrigados com a rapidez com que o Imperador anuiu às pretensões do primo
depois de anos de bravatas.
Dias
mais tarde, com a promessa de uma tença para o Santo Padre e fiel depositário
de um segredo que só a ele transmitiria, o cardeal Guido de Vico volvia a Roma,
não sem antes mandar carregar uma pipa do vinho de La Rioja que o cardeal
Molina tanto elogiara. No Duero, caudaloso, diluíam-se rio abaixo as
cinzas dum velho pergaminho…
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