Tudo a postos para a
recepção que Pinto da Fonseca, o Monte Cristo, ia oferecer para apresentar a
filha à sociedade, por ocasião das suas dezoito primaveras. Compareceriam o
Príncipe Real, D.Afonso, a condessa d’Edla, o deputado Mazziotti, donzelas
casadoiras e jovens garbosos, quiçá de entre eles o pretendente que procurava
para a filha. Criada por uma tia solteirona e tímida, Carlota pouco convivia
com estranhos, para lá de miss Lisa, a preceptora inglesa, pelo que achou o pai
ser altura de providenciar um genro de boas famílias e com fortuna adequada.
Tudo foi cuidadosamente arrumado, salões, móveis, jardim, atarefadas, as
criadas trabalharam denodadamente no vestido e penteado da menina de quem
cuidavam desde o berço, suspirando por não ser para elas a cintilante festa.
Pelas oito horas
chegou a primeira carruagem, com Lucrécia, prima de Carlota, sua amiga e
confidente, logo seguida das demais, e pelas oito e meia os músicos iniciaram a
função, arrancando com uma valsa e animando o salão. Sozinho chegou também
Miguel de Sousa Holstein, filho da Duquesa de Palmela e tenente de cavalaria,
herdeiro duma fortuna que a Regeneração engrossara. Previdente, Pinto da
Fonseca correu a apresentá-lo à filha, que o cumprimentou com uma tímida vénia.
Passado algum tempo, os
criados serviram acepipes no jardim, onde luminárias e balões celebravam o
sucesso do velho negreiro, agora dedicado aos têxteis e à importação de
madeiras exóticas. Miguel pediu uma dança a Carlota e logo perante os olhares
invejosos ambos rodopiaram ao som do Danúbio Azul, com toda a sala a
juntar-se-lhes chegada que foi a Marcha Radetsky.
Enquanto isto, no
jardim, um restolhar dissimulado e quase imperceptível junto à vedação quebrou
o silêncio da noite. O cocheiro da condessa d’Edla, que dormitava na carruagem,
esperando, ouviu algo, mas não deu importância, seria uma rã ou um gato, por
certo, Carlota adorava-os, e havia vários na quinta.
Depois de muito
dançarem, os convidados, sobretudo os mais novos, espalharam-se pelos jardins,
oportunidade para trocas de olhares mais insinuantes ou um envergonhado roubo
de beijos. Lucrécia, mais afoita que a prima, provocou um tenente de Lanceiros
que, meio avermelhado, não tirava os olhos do proeminente decote, enquanto
Miguel e Carlota passeavam falando de livros e música, a noite de Sintra estava
amena e generosa. A certa altura, Carlota pediu para se ausentar, para retocar
a pintura, e Miguel retornou ao salão.
No quarto soprava uma
brisa vinda duma janela entreaberta. Já fechava a portada quando uma mão lhe
apertou a boca e com a outra alguém lhe encostou uma faca à jugular. Com o
coração aos pulos, um intruso voltou-a para si e com um dedo ordenou-lhe
silêncio.
-Quem
é você, o que quer? -murmurou Carlota, com a voz trémula.
-Caluda, ou a festa vai virar velório! -ameaçou um negro,
aparentando trinta anos, com a roupa suja e enxovalhada e uns sapatos
esburacados -Se não queres que tu, ou
alguém da tua família morra, chama aqui o teu pai, já. E nada de ideias, ou
será pior para todos!
Perdida, Carlota
assomou ao corredor. O pai conversava em baixo, com Miguel, ao seu sinal,
pedindo-lhe que subisse, desculpou-se e foi ao encontro dela. Mal entrou nos
aposentos e logo o rosto se alterou ao deparar com a filha sentada numa
cadeira, tendo ao lado o negro, com uma mão no ombro dela e a outra com uma
faca encostada à garganta.
-Mas
que é isto? Quem és tu, canalha? Larga já a minha filha, ou mando açoitar-te,
escaruma!
Apesar de abolida a
escravatura, Pinto da Fonseca conservava os modos de senhor da Casa Grande que
durante anos lhe porfiara fortuna no Brasil, aquela imagem transportou-o para
Itabuna, onde em tempos chegara a ter trezentos escravos na sanzala. Ao vê-lo,
o negro ficou possesso:
-Silêncio,
branco velho. Quem fala aqui sou eu! Lembras-te da Jociara, a quem mandaste
açoitar quando te disse que trazia no ventre um filho teu, há mais de trinta
anos?
-O
que tens tu a ver com isso? Acaso tenho de dar satisfações a um preto como tu?
Larga já a minha filha, ou vais acabar na forca! Eu mesmo me encarrego disso!
O negro fez um
prolongado silêncio, e olhou Pinto da Fonseca nos olhos:
-Eu
sou o filho da Jociara! E sabes o que lhe sucedeu? Com tantos açoites que lhe
mandaste dar, morreu, um mês depois de eu ter nascido no quilombo. E por isso,
és tu quem vai pagar agora!
O velho traficante
empalideceu, olhou o negro e a filha e ficou com um olhar perdido, desarmado.
Carlota, sentindo-o sem reacção, arregalou os olhos, questionando o pai:
-Senhor meu pai, isto é verdade? Este homem é seu filho? Não me minta,
peço-lhe…
Carlota sentiu estar
a viver um pesadelo, ao mesmo tempo que ganhou simpatia pelo sequestrador.
Voltava a interpelar o pai quando um pontapé rebentou a porta do quarto e
Miguel, com uma arma, ordenou ao negro que largasse Carlota. Surpreendido, e
entre a raiva e o desalento, largou a faca, e foi forçado a ajoelhar,
imobilizado pelo jovem, que, desconfiando da expressão aflita de Carlota
chamando pelo pai o seguira, e tudo escutara no corredor. Aproveitando a
mudança nos acontecimentos, o negreiro apressou-se a esbofetear o negro, mas a
mão de Carlota agarrou-o, decidida:
-Espere
meu pai! Se este homem é seu filho, é pois também meu irmão. E a raiva dele é
justa, se é verdade o que escutei!
Miguel, ele próprio um
abolicionista, mantendo o preso imobilizado com a pistola, concordou com
Carlota, sem contudo demonstrar vontade de hostilizar o pai. Espantado, o negro
manteve-se em silêncio, expectante.
-Proponho
uma coisa: vamos arranjar-lhe um sítio para ficar, e pela manhã se cuidará que
se arranje uma reparação- e virando-se para ele,
colocou-lhe a mão no ombro, como que pedindo a desculpa que o pai nunca
pediria. Fonseca rendeu-se à filha, que assim tomou o pulso dos acontecimentos
no seu baile de debutante. Acalmado o negro, de nome Coriolano, Miguel levou-o
a comer na cozinha e providenciou-lhe aposentos, não na ala dos criados, mas na
dos hóspedes. Carlota e o pai voltaram à festa, e sem que ninguém se tivesse
apercebido, acabaram discretamente a noite, enquanto no jardim, atrás dum
carvalho, Lucrécia se ia divertindo com o tenente.
Dias
mais tarde, Coriolano foi convidado para caseiro duma quinta de Miguel, com
casa própria e vencimento, mais uma parte naquilo que a terra desse. Depois de
seis meses cortejando Carlota, o tenente pediu a Fonseca a mão desta, o qual
abençoou o enlace e, instado por ela, acabou por pedir perdão ao filho que
abandonara. Redimido o passado, de novo se juntaram para a boda, na Quinta do
Relógio, já Lucrécia exibia uma barriga de seis meses,de esperanças do capitão,
seu marido….
Exmo. Senhor Dr. Fernando Morais Gomes,
ResponderEliminarserá que me poderia fornecer o seu endereço de e-mail para entrar em contacto consigo a propósito deste texto?
Desde já muito obrigado,
Nuno MC Fernandes Thomaz