Segundo Jacques Rancière, um dos principais filósofos
contemporâneos, torna-se cada vez mais evidente que os Estados nacionais agem
apenas como intermediários para impor aos povos a vontade dos poderes
financeiros. Em toda a Europa, os governos, de direita como de esquerda,
aplicam o mesmo programa de destruição dos serviços públicos e da proteção
social, que garantiam um mínimo de igualdade no tecido social, revelando-se a
oposição entre uma oligarquia de financeiros e políticos, e a massa do povo
submetida à precariedade sistemática e sem poder de decisão. Estarão pois
reunidas as condições para um momento político, isto é, um cenário de
manifestação popular contra o aparato de dominação. Mas para que esse momento
exista, não é suficiente que se dê uma circunstância, mas também que esta seja
reconhecida por forças susceptíveis de transformá-la numa demonstração,
intelectual e material, e de converter essa demonstração numa alavanca capaz de
mudar a paisagem do “perceptível e do pensável”. O movimento do 15-M, em
Espanha, por exemplo, ou as manifestações no Brasil, hoje, mostrou claramente a
distância entre um poder real do povo e as instituições. Resta a capacidade de
transformar o protesto numa força autónoma, representativa e independente.
Os movimentos do 15-M ou do Ocupy Wall Street respondem à
ideia do poder próprio daqueles que nenhum motivo destina ao exercício desse
poder, e esse poder materializou-se, subvertendo a distribuição normal dos
espaços. Geralmente há espaços, como as ruas, destinados à circulação de
pessoas e bens, e espaços públicos, como os parlamentos ou os ministérios,
destinados à vida pública e o tratamento de assuntos comuns. Um renascimento da
política passará pela existência de organizações que se subtraiam a essa
lógica, que definam objetivos e meios de acção construindo uma dinâmica
própria, espaços de discussão e formas de circulação de informação visando o
desenvolvimento de um poder autónomo de pensar e agir.
Em Maio de 68, as pessoas discutiam Marx, segundo Rancière, o
que se discute hoje é uma visão do mundo que estruture naturalmente estas novas
formas de acção colectiva. Em Maio de 1968, a explicação marxista do mundo
funcionou no âmbito de uma visão histórica pela qual o capitalismo estaria
condenado a desaparecer pela acção da classe trabalhadora. Os manifestantes de
hoje não possuem horizonte histórico
para o seu combate, e são antes de tudo indignados, pessoas que rejeitam a
ordem existente, que não podem considerar-se agentes de um processo histórico,
e é isto que alguns aproveitam para escamotear, desqualificando o seu idealismo
e o seu carácter “inorgânico”.Com estes movimentos, há uma interrupção da
lógica da resignação à necessidade histórica preconizada pelos governos. Desde
o colapso do sistema soviético, o discurso intelectual contribuiu para endossar
os esforços para implodir as estruturas colectivas de resistência ao poder do
mercado. Esse discurso acabou. Seja qual
for o seu futuro, os movimentos recentes põem em xeque essa fatalidade
histórica, lembrando que não lidamos com uma crise da sociedade, mas sim com
uma ofensiva destinada a impor formas
brutais de precariedade.
Para restaurar os valores democráticos, é necessário chegar a
acordo sobre o que chamamos democracia. Habituámo-nos a identificá-la como um
duplo sistema de instituições, as representativas e as do mercado. Hoje, isso é
coisa do passado: o mercado mostra-se cada vez mais como uma força de
constrangimento que transforma as instituições representativas em meros agentes
da sua vontade, e reduz a liberdade de escolha dos cidadãos às variantes de uma
mesma lógica. Nesta situação, ou se denuncia a democracia como uma ilusão, ou
se repensa o que esta significa. Porque a democracia não é uma forma de Estado,
é antes de mais a realidade de um poder do povo que não deve nem tem de coincidir
com uma específica forma de Estado. Sempre haverá tensão entre a democracia
como exercício de um poder partilhado de pensar e agir, e o Estado, cujo
princípio é apropriar-se desse poder, justificando essa apropriação com a
complexidade dos problemas, ou a necessidade de se pensar a longo prazo.
Recuperar os valores da democracia será, pois, em primeiro lugar, reafirmar a
existência de uma capacidade de julgar e decidir, que é de todos, frente a essa
monopolização, e reafirmar a necessidade de instituições próprias, distintas do
Estado. A primeira virtude democrática é
a virtude da confiança na capacidade de qualquer um, e o poder dos cidadãos
acima de tudo, o poder de agir por si próprios, e constituir-se em força
autónoma. A cidadania não é uma prerrogativa ligada ao facto de se haver sido
contabilizado nos censos, como habitante ou eleitor, ela é, acima de tudo, um
exercício que não pode nem deve ser delegado. É pois preciso opor claramente
o exercício da acção cidadã aos discursos sobre a responsabilidade dos cidadãos
na crise da democracia, que lamentam o desinteresse dos cidadãos pela vida
pública e o imputam à deriva individualista dos consumidores penalizados. Essas
supostas chamadas à responsabilidade só têm, na verdade, e segundo Rancière, um
efeito: culpar os cidadãos, para prendê-los mais facilmente no jogo que
consiste em seleccionar aqueles por quem os cidadãos deverão deixar-se capturar
na sua possibilidade de agir fora do momento do voto. Estamos pois num ponto de
mutação na ideia de democracia, num sentido mais denso e sentido, cuja próxima
fase será a de encontrar vozes e meios com vista a ocupar o seu lugar numa
sociedade cuja construção/destruição está dramaticamente em curso.Taksim, Brasil, Atenas, Lisboa, o paradigma está a mudar
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