segunda-feira, 10 de junho de 2013

O altar de cortiça



Elise gostara do local. A Pena não, era grande demais, Maria Pia não perdoaria. Aquele recanto, resguardado por ciclópicos penedos, era perfeito para o recato procurado. Agora que a obra estava pronta, havia que ajardinar, John Slade, o cunhado de Elise, ajudaria, silvicultor experiente, há muito sugerira plantas do Japão e da Austrália para adornar o local. Depois do casamento, Fernando apressou as obras, queria fugir das Necessidades, das tosses de S. Carlos, e dos remoques de Luís, agora no trono. Lipipi crescera, largara o fato de marujo e depois da morte prematura de Pedro era agora rei de Portugal. Planeara uma coisa pequena, o talhão doze pareceu-lhe indicado, longe da desmesura da Pena. Elise quisera cortiça na fachada, e acabamentos que recordassem a casa em Boston, heras pintadas cobrindo as paredes. Gregório, o mestre-de-obras, também dera sugestões, mas Fernando queria o chalé simples, retangular em baixo e cruciforme no primeiro andar, com varandas ao estilo suíço.
Logo de manhã, com Gregório, visitaram a estrutura, já pronta, Elise, agora condessa d’Edla, rejubilava, antevendo os  acabamentos para aquele ninho providencial. Entusiasmados, percorreram o primeiro andar, escolhendo cores e móveis, e planeando a futura casa:
-Aqui podia ser o salão, talvez com uns troncos de hera em estuque e nervuras entrelaçando nas cornijas ramagens cobertas de folhas. Que me diz, Fernando? - Elise Hensler, ocupada com as tournées, nunca desde que partira de Boston, espalhando graciosidade pelos palcos da Europa, voltara a ter casa fixa, até a de Lisboa era alugada -Acolá, o seu quarto, talvez com motivos árabes… O meu será aqui em frente, e na escadaria…
-Na escadaria, proponho algo mais solene: as armas de Saxe e as de Portugal! –sublinhou Fernando, institucional- Tem ideias para o seu quarto, meu anjo? -de novo casado, o rei parecia vinte anos mais novo, fogoso cavaleiro com a sua donzela. Elise divagava, pueril e feliz:
-Domingos sugeriu rendas nas paredes, sob um fundo rosa ou azul, que lhe parece?
Fernando já não ouviu o final da conversa, de Lisboa chegava o secretário, as árvores do Japão viriam a tempo das plantações e na Primavera estariam adaptadas, Slade inspecionaria.
Sintra, regida pela Lua, encontrava nova sacerdotisa e esta o seu altar, os troncos de hera na fachada do chalé bem podiam simbolizar os quatro elementos, comentara Kessler, ali daria largas ao espírito, recolhendo-se com Fernando e suas canções, animando saraus com amigos, cuidando das plantas e do piano, num mundo só deles.
Muito sucedera em dez anos, desde que Fernando por ela se encantara. Tudo começara em S. Carlos. Ela, graciosa e frágil, fazendo de pajem no “Baile de Máscaras” de Fraschini. Depois, as visitas furtivas e frequentes ao 68 da R. dos Remédios. Luís, já rei, várias vezes surpreendera o pai chegando tarde ao palácio, qual furtivo conquistador. A sua morte prematura precipitou as coisas, sofrendo, e só, apenas encontrou conforto no regaço da Hensler, cada vez mais afastada das récitas. Disfarçada, chegou a levá-la em viagens como falsa esposa de Kessler, o médico ficou embaraçado, mas não foi capaz de dizer não ao amigo. Até que a 10 de Junho surpreenderam, casando na capela da infanta Isabel, em Benfica, já Luís reinava, a pedido de Fernando, Ernesto de Saxe-Coburgo fizera antes condessa d’Edla a filha de Conrad Hensler, alfaiate em Boston. Nesse mesmo dia, na feteira da Pena, ao plantarem um eucalipto, apaixonados selaram um sentido e tardio amor.
No chalé teriam uma corte só deles. Maria Pia nunca a aceitaria como sogra, em S. Carlos, os Pares do Reino olhavam-na de soslaio, à rainha do palco não queriam ver no palco como rainha, a Messalina que levara à certa o velho rei. Em Sintra encontrariam paz, entre as flores e as aguarelas de Fernando, na Abegoaria preparariam chás e renovariam plantas, reis da Floresta no altar da Cruz Alta.
-Elise, que me diz se ali puséssemos magnólias? - Fernando contemplava o imenso vale do alto dos rochedos frente à casa. Com as mãos entrelaçadas nas dele, fez-lhe uma festa na testa, e sorriu. Mirando o chalé, quase terminado, uma certeza lhe ficava cada vez mais clara. Era aquele o lugar.

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