Nos agora loucos anos 90, anos de vacas gordas, quando o
futuro era risonho e ilimitado, assistimos ao triunfo do hedonismo
individualista, do consumismo desenfreado, dos empregos sorridentes e da
abundância ilimitada. O progresso era uma questão de tempo, e a curva dos
rendimentos sempre ascendente. Sob o signo do estradismo cavaquista fizeram-se
vias e pontes, os hipers cresceram como cogumelos, Punta Cana e Cancun
estranharam a presença inusitada de tantos portugueses.
Posta a ressaca e um despertar entre náuseas estranhas,
alguma contenção foi recomendada, pouco escutada porém. Passado algum tempo, a
dose aumentou, e os atarantados consumidores de telemóveis e playstations entreolharam-se ante o que
se estaria a passar, quais passageiros da primeira classe do Titanic depois do primeiro embate, ainda
a música fluía e o champanhe inebriante jorrava. Num ápice, tudo se desmoronou,
os sorrisos desapareceram, os amanhãs ficaram nublados e, qual bruma tenebrosa
atrás de cifras indecifráveis e títeres movendo-se entre gráficos, o barco
começou a meter água, a música parou, os criados fugiram, e, com um comandante
sem sinais no radar, os passageiros quais zombies
procuraram uma saída redentora. Alguns lançaram-se já à água, em busca de
destinos mais risonhos, outros aguentam ainda na fila para o salva-vidas, onde
nem velhos nem mulheres estão primeiro, a maioria raciona os poucos víveres e
reza por um bote que lhes devolva a Ítaca perdida, antes a um passo, e agora,
distante e minúscula, encerrada num passado recente e cada vez mais longínquo.
Como o ser de Platão, capturada a luz, deixámo-la escapar, e, chamuscados,
regressamos ao negrume das trevas, esperando um sebástico raio de luz que de
novo permita espreitar a luz, sem risco de cegar.
Com o medo latente e de volta, proféticos velhos do
Restelo anunciam de novo caminhos esconsos, e, na ânsia de sobreviver, valores antes
basilares ameaçam ser facilmente escamoteados, capturados por hordas
vorazes. Agora os rendimentos, os direitos básicos depois, a democracia, por
fim, até que alguém feche a luz e bata com a porta. Vamos fechar as
portas que gerações de lutadores deram a vida para abrir?
É denso o nevoeiro no Titanic-Portugal. Há porém que
fazer do madeirame podre jangadas, dos lençóis velas e com os náufragos de novo
sulcar o mar-oceano. Essa a tarefa hercúlea desta geração. Como sempre, ao
longo da nossa História.
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