José Alfredo acelerava Estefânea abaixo fugindo a uma chuva miudinha que desde
manhã ameaçava dos lados da praia e rápido se abrigou no hall do Jornal de
Sintra onde levava mais um dos seus poemas, assinados como Zé da Vila. Desde
que escrevera no jornal contra as intenções do Conde de Sucena de ajardinar
Seteais e levara as gentes da Vila a tocar o sino a rebate, dedicava-se com
denodo a despachar para o jornal artigos
sempre acutilantes. Quando o Zé Alfredo não escrevia, nada se passava no
burgo. Já protegido da chuva, cruzou-se com o Mário Reis e o Medina, que
escutavam um poema da Maria Almira, finalista de Letras e orgulho do pai
babado.
-É sempre a mesma coisa, ó Zé, o chapéu ficou esquecido em
casa - saudou o Medina, riso largo e voz quente, dando uma palmada nas costas
secas do Zé.
-Chapéu só se for para dar umas “patadas” em certos
cavalheiros…-ripostou de imediato, na voz vigorosa e firme.
Aquele ano de 1935 corria ameno e de feição para Sintra. Em
Setembro, no Casino, dirigidos por Lafayette Machado, tinham actuado Auzenda de Oliveira e Fernanda Coimbra, em
Novembro as instalações da Pensão Nova Sintra de Miguel Rebelo passaram para a
antiga sede do Sintra Club, as noites corriam animadas pelo garboso Estefânea Jazz, fundado em 1930 pelo José
Martins de Oliveira. Estavam na memória as pomposas cerimónias da recepção ao
presidente Carmona, no Verão. Tudo corria em paz e progresso, mal se
adivinhando que na Europa Central um franzino demagogo se preparava para mudar
a História do século.
-Sabe que mais, ó Medina, lembrei-me que cá no jornal vocês
podiam lançar uma campanha para erigir uma estátua ao D. Fernando II.
-Estátua? Ó homem, então você, um jacobino encartado, quer
alinhar com os talassas? Isso de reis está fora de moda! -alvitrou o Mário
Reis, chefe da redacção do jornal.
-Pois é, mas sabe, para mim quem faz pela terra não tem
partido nem posto, todos sabem que o homem pôs isto no mapa! -retorquiu o Zé.
Além do mais, até o Carmona, que apesar de apoiar esse sacripanta do “Botas”
nem é mau tipo, inaugurou uma lápide na Pena em sua homenagem.
-Mérito do Carvalho da Pena! Aquele homem vale o peso dele
em ouro!.-atalhou o Medina, abanando a cabeça.
-Escreva o que lhe digo: o Carlos Carvalho percebe mais dos
jardins da Pena que todos os engenhocas dos serviços florestais juntos!
–perorou o Zé Alfredo, de dedo em riste, logo voltando ao tema. Mas o que acha
da ideia da estátua, ó Medina?
-Mas quem poderia esculpi-la? O Anjos Teixeira pai ainda há
pouco tempo foi para a terra da verdade. E se quer que lhe diga, está mais
fresca a memória do dr. Brandão de Vasconcelos. E não se chamavam cá reis nem
rainhas…-ajuizou Mário Reis, velho republicano.
-E punha-se a estátua onde? Na entrada da Pena? -perguntou o
Medina.
-Não, não, depois do arco do
Ramalhão, de frente para o palácio. Assim, quem viesse de Lisboa ficava
logo a saber a quem se deve isto tudo! -explicou o Zé Alfredo, tinha a ideia bem
estudada na cabeça.
-Olhe, ó Zé, esqueça mas é lá isso, vamos é almoçar, que o
Alberto Totta chegou agora das Azenhas e trouxe umas perdizes e um tinto da
adega dele. Isso é que é de rei, sim senhor! -atalhou Mário Reis, já com um
rato no estômago.
E lá foram em direcção à Sociedade União Sintrense, onde
Alberto Totta já se adiantava sentado com umas suculentas tiras de presunto e
uma garrafa de vinho tinto.
A estátua ficou para as calendas.Com o início da Guerra,
outras preocupações sobressaltaram o velho burgo, o país aninhado á sombra do
sacristão do Vimieiro virava-se para outras prioridades. Quarenta anos depois,
um Zé Alfredo tornado autarca pelo novo poder de Abril voltou à carga e a
estátua lá se inaugurou. José Alfredo da Costa Azevedo, republicano e maçon,
contra a corrente dos tempos, inaugurava no Ramalhão a estátua a um rei que
criara o melhor de Sintra e lutara por um Portugal instruído e atento, contra
aqueles que lhe estranhavam tendências monárquicas pelo facto de lembrar não os
cargos mas os Homens. Homens Bons.
Sem comentários:
Enviar um comentário