terça-feira, 17 de julho de 2012

A estátua

José Alfredo acelerava Estefânea  abaixo fugindo a uma chuva miudinha que desde manhã ameaçava dos lados da praia e rápido se abrigou no hall do Jornal de Sintra onde levava mais um dos seus poemas, assinados como Zé da Vila. Desde que escrevera no jornal contra as intenções do Conde de Sucena de ajardinar Seteais e levara as gentes da Vila a tocar o sino a rebate, dedicava-se com denodo a despachar para o jornal artigos  sempre acutilantes. Quando o Zé Alfredo não escrevia, nada se passava no burgo. Já protegido da chuva, cruzou-se com o Mário Reis e o Medina, que escutavam um poema da Maria Almira, finalista de Letras e orgulho do pai babado.
-É sempre a mesma coisa, ó Zé, o chapéu ficou esquecido em casa - saudou o Medina, riso largo e voz quente, dando uma palmada nas costas secas do Zé.
-Chapéu só se for para dar umas “patadas” em certos cavalheiros…-ripostou de imediato, na voz vigorosa e firme.
Aquele ano de 1935 corria ameno e de feição para Sintra. Em Setembro, no Casino, dirigidos por Lafayette Machado, tinham actuado  Auzenda de Oliveira e Fernanda Coimbra, em Novembro as instalações da Pensão Nova Sintra de Miguel Rebelo passaram para a antiga sede do Sintra Club, as noites corriam animadas pelo garboso  Estefânea Jazz, fundado em 1930 pelo José Martins de Oliveira. Estavam na memória as pomposas cerimónias da recepção ao presidente Carmona, no Verão. Tudo corria em paz e progresso, mal se adivinhando que na Europa Central um franzino demagogo se preparava para mudar a História do século.
-Sabe que mais, ó Medina, lembrei-me que cá no jornal vocês podiam lançar uma campanha para erigir uma estátua ao D. Fernando II.
-Estátua? Ó homem, então você, um jacobino encartado, quer alinhar com os talassas? Isso de reis está fora de moda! -alvitrou o Mário Reis, chefe da redacção do jornal.
-Pois é, mas sabe, para mim quem faz pela terra não tem partido nem posto, todos sabem que o homem pôs isto no mapa! -retorquiu o Zé. Além do mais, até o Carmona, que apesar de apoiar esse sacripanta do “Botas” nem é mau tipo, inaugurou uma lápide na Pena em sua homenagem.
-Mérito do Carvalho da Pena! Aquele homem vale o peso dele em ouro!.-atalhou o Medina, abanando a cabeça.
-Escreva o que lhe digo: o Carlos Carvalho percebe mais dos jardins da Pena que todos os engenhocas dos serviços florestais juntos! –perorou o Zé Alfredo, de dedo em riste, logo voltando ao tema. Mas o que acha da ideia da estátua, ó Medina?
-Mas quem poderia esculpi-la? O Anjos Teixeira pai ainda há pouco tempo foi para a terra da verdade. E se quer que lhe diga, está mais fresca a memória do dr. Brandão de Vasconcelos. E não se chamavam cá reis nem rainhas…-ajuizou Mário Reis, velho republicano.
-E punha-se a estátua onde? Na entrada da Pena? -perguntou o Medina.
-Não, não, depois do arco do  Ramalhão, de frente para o palácio. Assim, quem viesse de Lisboa ficava logo a saber a quem se deve isto tudo! -explicou o Zé Alfredo, tinha a ideia bem estudada na cabeça.
-Olhe, ó Zé, esqueça mas é lá isso, vamos é almoçar, que o Alberto Totta chegou agora das Azenhas e trouxe umas perdizes e um tinto da adega dele. Isso é que é de rei, sim senhor! -atalhou Mário Reis, já com um rato no estômago.
E lá foram em direcção à Sociedade União Sintrense, onde Alberto Totta já se adiantava sentado com umas suculentas tiras de presunto e uma garrafa de vinho tinto.
A estátua ficou para as calendas.Com o início da Guerra, outras preocupações sobressaltaram o velho burgo, o país aninhado á sombra do sacristão do Vimieiro virava-se para outras prioridades. Quarenta anos depois, um Zé Alfredo tornado autarca pelo novo poder de Abril voltou à carga e a estátua lá se inaugurou. José Alfredo da Costa Azevedo, republicano e maçon, contra a corrente dos tempos, inaugurava no Ramalhão a estátua a um rei que criara o melhor de Sintra e lutara por um Portugal instruído e atento, contra aqueles que lhe estranhavam tendências monárquicas pelo facto de lembrar não os cargos mas os Homens. Homens Bons.

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