Sexta feira dia 4 os Tapafuros regressam às noites de Sintra, desta feita ao Parque da Liberdade, para a sua versão de "Sonho de Uma Noite de Verão" de Shakespeare.Rui Mário, Hilário, Samuel e companhia vão desta feita animar a noite da Volta do Duche e valorizar Sintra, que, a par de outros grupos na Regaleira, disporá assim de uma oferta de Verão ao seu melhor nível. Dois recados apenas: ao público, que não falte, a quem prometeu apoios que se lembre que os artistas comem todos os dias e que todos têm contas para pagar já e não num futuro incerto.
Entretanto, aqui recordo um texto meu de homenagem a estes grandes senhores, Amigos com A grande e cruzados do teatro, a par de um razoável conjunto de actores e encenadores de que Sintra se pode hoje gabar.
A tarde caía
fresca na penumbra das árvores, no improvisado camarim da Regaleira
actores e técnicos agitavam-se para a estreia de Hamlet, toda a família
do Tapafuros em azáfama, levando o príncipe de Elsinore ao palco da
Quinta Mágica. Em noite cacimbada, com um vento irritante e familiar, Rui
Mário dava instruções, o teatro feito verbo, atento a detalhes e
lembrando marcações, enquanto a um canto Hilário testava o
som, revendo as músicas minimais com que em som ilustraria o desassossego.
Já vestido e maquilhado, Samuel, o Hamlet de Sintra, relia o texto uma
última vez, muita merda, haviam
desejado antes a Rute e o João Vicente. Pela noite, a lua cheia bafejaria as mulheres
com uma hora pequenina e também ao luar a peça teria o parto.
Na bilheteira, com o conforto de casa cheia, Marco desdobrava-se recebendo os
espectadores, cúmplices, os amigos viriam para um copo ao fim da noite.
Um percalço: um jovem actor, nervoso com a estreia, tivera uma
"branca", o Olavo substituiria, sabia o texto todo.
Desta vez
Rui Mário seria o fantasma, invisível voz na noite escura, do além
conduzindo os títeres mortais em valsa lenta. Ao jantar, no Culto, bebera um revigorante tinto, qual
guerreiro antes da batalha e ortónimo de fantasmas vários, da vida, de vidas,
fingidor sem falsidade. No camarim, com Samuel, a verificação das marcações, a
colocação da voz, o guião relido:
-"Que
velhaco sou eu, que vil escravo! Pois não será monstruoso? Este actor pôde, numa
simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma aos seus preceitos, a
ponto de fugir-lhe a cor do rosto, marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe,
a voz tornar-se trémula, e toda a compostura conformar-se às suas
influências?" -repetiam, o texto em confissão, a confissão em texto,
o olhar no espelho onde Samuel era Hamlet e Hamlet o mundo.
O silêncio
invadia a noite no antro do Grande Alquimista. Começada a função, a pantomina
das máscaras desfilou o seu jogo de sombras, Sintra-Elsinore, Dinamarca
em Cynthia, a pequenez e grandeza dos homens, convocando-os para o desvendar das
fragilidades que o truão de Stratford-Upon-Avon desnudara, temido dos
poderosos e mordaz porta-voz dos sem voz. Os jovens actores do Resistências
debutavam, como há vinte anos outros o haviam feito, tapando furos das aulas,
iniciáticos filhos do teatro. Um deles, como discreto escudeiro, no Pátio das
Quimeras, outros dois, silenciosos cortesãos na corte de Cláudio, rei indigno,
no palco do mundo muitos Cláudios por aí também, na pérfida récita da
traição. Rui Mário acompanhava, tutelar, e o primeiro acto fluía, o público
bebendo as palavras ditas, Rui, letárgico, repetindo-as, sentidas:
-“Oh, se
esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao
menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me
afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! Que horror! Jardim
inculto em que só medram ervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes e
grosseiras”
Marco
registava em vídeo, e como produtor eficaz, guiava uma jornalista, que
assistia, prometendo uma reportagem para a televisão. No canto superior da
bancada, os amigos dos Tapas escutavam em silêncio, no final se daria bálsamo às
gargantas, no primeiro dia do resto daquele Verão.
-Cada
peça encenada é um libelo de resistência - comentou o Rui com o Jorge
Menezes- fazer teatro hoje é ter a sobriedade de ser louco, porém sem
loucura corremos o risco de ficar doidos - rematou, o criador olhando a
criatura, Jorge, aconchegando o cachecol, concordou, só os Tapas o
arrancavam do exílio em Fontanelas.
A peça
caminhava para um perturbador clímax que o dramático enredo tecera,
profético, inquieta, a sonoridade do Hilário acompanhava, e na bancada
expectante antevia-se a tragédia, renovada em cada récita. Já Samuel
erguia o crânio de Yourik, finitude de Ser prostrado convidando à
reflexão, e no confessionário da Regaleira-Mundo se incensava a Vida,
abúlica e trágica nas lapidares palavras confessadas por gerações de actores, no
mágico e catártico momento do Grande Teatro do Mundo:
-"Ser
ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e
arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e
dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar
que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que
constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se…"
A
assistência bebia cada palavra, e de olhos fechados, no breu da noite, druida junto ao seu carvalho, Rui
Mário deixava cair o pano imaginário, Príncipe da Dinamarca
no orvalho de Sintra, desfiando qual oração o imortal texto só para si, na solidão daquele recinto
cheio:
-"Morrer…
dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que
sonhos poderá trazer o sono da morte, quando enfim desenrolarmos toda a meada
mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida
assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as
injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não
retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia
contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um
punhal?
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