quarta-feira, 25 de junho de 2014

Terroristas na Portela de Sintra


A carrinha ficou no estacionamento enquanto os dois jovens se abasteciam no Pingo Doce da Portela, à porta, ruidosos alunos do liceu devoravam pizza e refrigerantes. Pelo carro das compras, levaram só alimentícios: bifes, arroz e cerveja, um deles comprou o jornal. A velha carrinha pão de forma estava em desalinho com jornais velhos pelo chão, um bidon de gasolina, toalhas de praia, um CD de Lady Gaga no porta-luvas. Na Portela ninguém os conhecia, mas há três dias pelo menos tomavam o pequeno almoço no café do Baptista, sempre à mesma hora e antes de irem ao supermercado.

A Gracinda do 26, frente ao jardim, reparou que estavam no segundo esquerdo. Desde que o Ramiro morrera, três meses antes, a casa ficara fechada, a única filha vivia em Espanha e só fugazmente lá ia. Amigos espanhóis, pensou, cuscando atrás das cortinas, a carrinha era velha e desconjuntada. Já comentara até com a Ercília do primeiro esquerdo, quando esta saiu a passear o cão. Os novos ocupantes pouco se viam e ignorava o que fariam lá dentro, só havia uns tarecos que a filha do Ramiro deixara. Ao fim de cinco dias sumiram, e a carrinha pão de forma não voltou a ser vista, para a vizinhança caso arrumado e as conversas de volta à crise e à ciática da Gracinda.

Uma semana mais tarde, almoçava ela pataniscas com arroz, o Jornal da Tarde abriu com a notícia de que se suspeitava que a ETA preparava operações em Portugal, temiam-se atentados em zonas balneares espanholas, à semelhança de anos anteriores. Casas nos arredores de Lisboa estariam a ser alvo de observação pela polícia portuguesa, bem como todos os estrangeiros fora dos circuitos turísticos. Qual clique repentino, a Gracinda lembrou-se dos rapazes do segundo esquerdo, partiram como chegaram e tinham um sotaque esquisito, correu a comentar com a Ercília. Era isso, só podiam ser eles, um telefonema para a esquadra despoletou uma visita ao local. Nada apontava para a escolha de sítio tão visível, mas à cautela, havia que apurar. Alertada por um vizinho jornalista, uma equipa da SIC plantou-se no local, transmitindo em directo, logo atraindo a TVE e outros canais. Gracinda e Ercília desdobravam-se em entrevistas, à TVI perguntaram mesmo quando seriam convidadas para o Goucha, para terem tempo de arranjar o cabelo.

Montado o perímetro, chegaram as minas e armadilhas e os habituais reformados do jardim. Arranjada uma ordem judicial, a porta foi franqueada, mas aparentemente nada de estranho foi detectado, se bem que jornais espanhóis pelo chão, bem como um saco do Corte Inglés dessem azo a suspeitas. Atraídos pelo circo mediático, os vizinhos desdobravam-se em comentários, o Vítor vira-os no café do Baptista, tinham aspecto de etarras sim senhor, um tinha até uma T-Shirt com as palavras Sex Bomb estampadas.

Passaram uns dias, recolhidas impressões digitais e com a ajuda da Europol, lá se descobriu que os dois eram espanhóis de Getafe e amigos da filha do Ramiro, a viver em Espanha. Tendo ela oferecido a casa para uns dias em Portugal, já de volta a Espanha estranharam a visita da Guardia Civil. Estudantes, tinham ido conhecer Sintra e como fizesse bem tempo, haviam ficado uns dias a fazer praia.

As notícias reportando estes factos não sossegaram Gracinda. Ali havia tramoia. Eram terroristas, sim senhor, mas a polícia não podia admitir, para não espantar outros que cá estivessem, com esta se ficava, e tendo ido passear à vila, todos os espanhóis lhe pareceram estranhos. O marido da Alzira explicou-lhe que a ETA era coisa duns tipos que queriam a independência e não gostavam do rei. Que tratantes, comentou com a Ercília, o novo rei de Espanha era tão boa pessoa, um rapaz novo e bem parecido. Escutadas notícias sobre pepinos infectados, só poderia ser coisa dessa ETA, à cautela não comprou mais nenhum, poderiam estar contaminados.

Com os dias, a coisa saiu da actualidade e as novidades passaram a ser sobre as transferências do Benfica. A casa do Ramiro continuou fechada, para ela perigoso esconderijo de bandidos, que andava para aí uma seita que só visto, já nem o nosso cantinho escapava. Chegado o fim de Junho, Gracinda foi de férias para a terra, o assunto morreu e Sintra saiu do mapa mediático, voltando ao movimento do Pingo Doce e aos pacientes a caminho das análises, até a escola fechou, para só abrir em Setembro.

No final do mês, com a Portela deserta e os serviços a meio gás, três indivíduos com um Megane alojaram-se no prédio ao lado do da Gracinda, transportando caixotes e sacos pretos colados com fita adesiva, despovoado o bairro, nem se deu por eles. Na segunda noite, com um pano com as palavras  Euskadi Ta Askatasuna estampadas, e ladeados por uma bandeira com uma serpente enrolada num machado, os forasteiros, encapuzados, gravaram um vídeo que mais tarde discretamente deixariam na Zara no Cascaishopping. Anunciando um atentado, a mensagem não deixaria dúvidas sobre os planos da ETA. Razão tinha a Gracinda, de férias lá na terra, a Portela definitivamente estava a virar um santuário terrorista.

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