Entre 2004 e 2005, escreveu Miguel Real, escritor e ensaísta
teimosamente “sintrense”, dois frescos literários que não é demais realçar e
sugerir como leitura a quem não leu, tendo mesmo uma ligação lógica a leitura
seguida das duas obras, pelos pontos de intersecção que aí se detectam.
Em A Voz da Terra (QuidNovi,
2005, Prémio Fernando Namora 2006)Miguel Real retrata de forma apaixonada e
impressiva o Portugal de Setecentos, clerical e enfatuado, vivendo do ouro do
Brasil, com uma nobreza ociosa e um clero corrupto, marcado pela acção ainda discreta
de Sebastião José Carvalho e Melo. É a esse Portugal que chega do Brasil em
vésperas do terramoto para duas missões secretas Júlio Fernandes (Julinho),
acompanhado do seu escravo Florentino, conseguindo Miguel Real de forma
magistral descrever locais, atitudes, arquétipos e perfis, onde não faltam
personagens-tipo como o cónego Formigão, glutão e lascivo, Porão Escorço, o
esbirro da repressão, os Peixotinhos e as Esmeraldinhas, amigos de infância do
Brasil e seguidores das ideias de Sebastião José, os comerciantes ingleses
Smith ou a velha nobreza representada pelos condes de Vilavelha. Pelo meio,
Lisboa suja e esconsa, de missas e cristãos-novos silenciados, de touradas e
procissões. Dividido entre um Brasil que lhe tirara mulher e filho e despertado
por uma paixão irracional por uma judia que encontra e logo perde nos dias
lancinantes do terramoto, Miguel Real pinta um fresco bruegheliano e sedutor
das misérias e leviandades humanas em torno de Julinho, acabando este por voltar à liberdade do sertão
com a judia Violante e seu filho, que durante quatro anos procura nos escombros de
Lisboa, deixando um Portugal que ao chegar era atávico e de sacristia, e à
partida experimenta a ascensão do comércio e das luzes, castigado por Deus e sob a mão forte do Ministro
de D.José.
Já em O Último Negreiro
(QuidNovi, 2006) Miguel Real penetra nos sons, cheiros e cores
do Brasil Colónia e suas idiossincrasias. Situando-se inicialmente na Bahia dos fins de 1790, com a
miríade de senhores de engenho, quilombos, escravos e mestres atravessadores, é
uma sociedade parasitária e corrupta que domina a Administração e os negócios,
enquanto nas ruas se conspira por uma República negra e baiana e se relatam os
principais eventos da chamada Revolta dos Alfaiates de 12 de Agosto de 1798. Não
faltam os portugueses corruptos (o desembargador Avelar e Barbedo, o banqueiro
Marinhas) a autoridade portuguesa, amores contrariados como o do capitão
Carolho e a filha do desembargador Costa Pinto, e os seguidores dos ideais da
revolução francesa, a “francesia”, com destaque para o papel do médico Cipriano Barata ou
do comerciante Francisco Agostinho Gomes. E, pungentes, os mulatos afixadores dos pasquins contra
Portugal, Luís Gonzaga das Virgens e seus companheiros, supliciados num
banho de sangue em nome de D.Maria I, a Piedosa.A ligação com A Voz da Terra surge com a intervenção incidental de Julinho, morto
aos 90 anos, dos filhos de Violante, Samuel e Simão, já adultos, e de
Florentino, agora velho e senhor do quilombo de Rio das Rãs.
Atravessando este universo, a figura solitária e mística de
Francisco Félix de Sousa, negreiro e chibateiro, pária e sem escrúpulos,
seguindo a sua estrela do Senhor dos Navegantes, que depois de se vingar de
ofensas passadas tudo larga e atravessa o mar oceano, fixando-se em Ajudá,
forte abandonado pelos portugueses e onde, aos poucos, com o apoio dum régulo
local, Comalangã, do negreiro Nicolas e do escravo Pedra constrói um império
esclavagista, lançando milhares de africanos para os engenhos do Novo Mundo,
depois de os fazer rodar a árvore do esquecimento, fazendo a sua “segunda meia
vida” entre a devoção ao Senhor dos Navegantes e à serpente Dã, também ele
marcado pelo sincretismo religioso que marcou a vida no Brasil e na costa da
África portuguesa, entre igrejas e terreiros, orixás e santos milagreiros, procissões e práticas vudu.
Lendo ou relendo estas duas obras, revela-se um fôlego
histórico, descritivo e onírico que nos transporta no tempo e faz pensar no que
fomos e no que queremos ser como povo. Ao expor as fraquezas dos homens, Miguel Real
fá-lo sem preconceitos ou ideias feitas, não sendo difícil reconhecer em cada
personagem alguém que ainda hoje nos cerca ou influencia, talvez porque acima da
Voz da Terra, sempre surge, com novas ou velhas roupagens, a Voz dos Homens,
pusilânimes, contingentes, sonhadores ou vingativos. Ainda bem que há um Miguel
Real na literatura portuguesa contemporânea.A ler ou reler, estas e outras obras suas.
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