A carta de D. Francisco Barreto
era seca e tinha o peso da autoridade régia: Luís Vaz de Camões, provedor
dos Defuntos e Ausentes de Macau, acusado de irregularidades, deveria abandonar
o posto. Jocosas
redondilhas que publicara em Goa, que o governador não viu com bons olhos,
levavam ao seu afastamento, sem dinheiro para viver. Carreira para
Lisboa, só depois da monção, a alternativa, sobreviver numa gruta em Patane,
tempo consumido a escrever a história lusa, que quanto mais perseguido, mais
celebrava em verso, soldado do Império pelo mundo repartido.
Inopinadamente, certa manhã soldados
do Governador acercaram-se da gruta e ordenaram-lhe que os acompanhasse, o
capitão do Nau da Prata queria falar-lhe. O Nau da Prata,
carregado de valiosas fazendas, fazia a carreira anual entre a China e Goa e
Francisco Martins, o capitão-mor, detinha-se em Macau para embarque de
mercadorias e da guarnição que renderia a de Goa mais tarde. Miseravelmente
vestido, e apenas com os papéis que levou da gruta, foi presente ao capitão, a
bordo:
-Sois Luís Vaz de Camões,
antigo Provedor dos Defuntos e Ausentes desta cidade?
-Sim, malfadadamente sou essa
pessoa, que me quereis?
-Tenho ordens de vos levar
prisioneiro. E a ferros, ordens expressas.
-E tanta galanteria deve-se a
quê, dar-me-eis a mercê de saber?
-Ignoro. Porém, se não
criardes problemas poderei permitir que usufruais de alguma liberdade a bordo.
Com restrições. Olhando os papéis amarrotados que trazia debaixo do braço,
questionou:
-E isso, que são? Despachos da
Provedoria dos Ausentes?
-Não…-respondeu, irónico
- tontarias de um português cativo…- aqueles versos, a que já dera
muitos nomes e titulava Os Lusíadas, uns gatafunhos ilegíveis,
não continham segredo algum, pelo que Francisco Martins deixou seguir,
mandando-o conduzir ao porão.
A parafernália das fazendas misturava-se
com o cordame e os boçais tripulantes, uns embarcados em Macau, outros cativos.
Camões encostou-se a um canto, contemplando mais um destino perdido, a vida de
novo repartida em barcos e enxergas do Império. Absorto, com o olhar perdido no rio das
Pérolas, levou tempo a perceber que perto de si uma jovem nativa o fitava,
sentada numa arca de madeira.
-Estais triste senhor? –perguntou
a medo, um sorriso frágil numa cara pequena e arredondada.
-A tristeza é a minha
companheira, e a dor o meu destino. Com tais cativas musas levarei este mar de
lágrimas. E vós, quem sois, jovem donzela?
-Não me reconheceis, de
Patane?
-Acaso pude viver em Patane
sem meus olhos ficarem cativos de tão graciosa figura?
-Muitas eram as prisioneiras
de vosso olhar, senhor…
-E por que nome responde tão
bela flor-de-lótus?
Camões, cativo mas galanteador,
esquecia já a nau onde o aprisionavam, para se prender a outros ferros que os
deuses lhe punham à frente.
-Sou Tin-Na-Men, de Patane, e
viajo para Goa nesta nau.
-Tin-Na- Men…A Porta do
Paraíso. Outro nome não caberia melhor a tão graciosa figura…-elogiou,
beijando-lhe a mão.
Em boa verdade, Tin-Na-Men
embarcara atrás do homem que de longe contemplava em Patane, por vezes falando
e esbracejando sozinho, mas sempre enamorado, todas belas, todas sonetos
eternos e espontâneas redondilhas. Elas não o entendiam, mas sorriam,
cedendo aos galanteios do incauto aventureiro.
Uma semana passou, do Mekong ao
Índico, e Tin-Na-Men e Luís Vaz envolveram-se em paixão, novo destino se abria para o
desgraçado provedor dos ausentes. De longe, o capitão-mor observava, não sem um
sorriso complacente, apesar de prisioneiro, até simpatizara com o
desajeitado, sem um olho, irmão de armas afinal. Goa, nova escala de exílio, seria amenizada com a pérola de jade que deuses protetores enviavam.
À terceira semana, Zeus
mudou o rumo à viagem, as águas tornaram-se revoltas, e piratas das Molucas
cercaram a embarcação, sendo prontamente repelidos, ao que Luís Vaz ajudou. Os ventos e as
ondas fragilizaram o Nau da Prata, porém. Francisco Martins mandou baixar as
velas, que começavam a abrir fendas, descosendo-se. No Olimpo, Eolos
soprava, castigador, em desespero, o capitão-mor mandou embarcar as mulheres
num batel. Uma ilha se avistava perto, os homens a alcançariam a nado.
No momento do embarque e ao
separarem-se, Luís e Tin-Na-Men apertaram as mãos, haveriam de se salvar para desfrutar do seu amor em Goa. Camões, com os poucos pertences, foi dos
últimos a saltar para as águas tépidas e madrastas, levando os gatafunhados versos na
camisa. O pequeno batel, com Tin-Na-Men e as demais mulheres, depois de
serpentear desgovernado, acabou porém impiedosamente engolido pelas águas. A
sua mãozinha frágil, submergindo aflita, foi a última visão de Luís Vaz,
náufrago da vida e de novo órfão do amor.
Em Goa, a sua via-sacra
desditosa prosseguiu, um fugaz amor lhe fora dado e, avaro, logo roubado pelo
destino. Tin-Na-Men, a sua Dinamene, virara princesa do mar profundo, qual
frágil pérola retornando à concha, pequena e alva. Solitário sobrevivente do amor, numa
praia daquela Goa sem sentido, a sua pena lacrimejando escreveu saudade na
areia branca e fina: Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo,
desta vida, descontente/ Repousa lá no Céu eternamente/ E
viva eu cá na terra sempre triste/Roga a Deus, que teus anos
encurtou/Que tão cedo de cá me leve a ver-te/Quão cedo de meus olhos te levou.
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