quarta-feira, 1 de março de 2017

Dilúvios da Alma

 

Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão, cheio de gente a ver o mar em circenses acrobacias, como medonha e bela está a praia, espumosa bátega de poder.

 

É Inverno ainda no país das flores, de vez  se foram já os cravos furtados das armas, agora apontadas a subjugados prisioneiros num país que já foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo acusado de ousar sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar a onda, ousando, e logo atávico o apelo a desistir, vencido de si, temeroso. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. Recordo Kurt Weil, por onde escapar para o próximo whisky bar?…

 

Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar, com novos cravos em cano velho agora, distraído apontado a nós? Brancos, desta vez querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera tarda… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, não fiques longe de Portugal…

 

Somos uns idiotas, ululantes hordas de conformados seres patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen, assustam, cercam. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas perigosas agora, promessa de castigos, cruéis e castradores, e de estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não mais despertar, para de vez voltar ao filme onde todos são felizes, que inveja, ah, como é puro o cheiro límpido do iodo. É avaro o Verão em chegar, mas magnânimo o iodo.

 

Caneta, papel, umas linhas para a imortalidade esculpidas no areal, ao lado trilhos de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, a velha Alabama Song, sejam Doors ou David Bowie, é Portugal amarelo cor de scotch passando em fundo, albergue de errantes, trôpego de futuro e sem pedras de gelo. Vamos todos para Alabama, acolhidos no whisky bar!. Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a caminho do Angra, e eu gelado aqui.

 

O Chico emigrou, cansado de desesperar, emigrou não, globalizou-se, como se diz agora, o Zé Luís morre aos poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel surpreendi ouvindo o Zeca e Doors, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Rafa, só alta madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.

 

No quiosque, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler jornais. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, talvez salvemos o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à vida, amancebados que nos tornamos com o álcool redentor e concubino.

 

Penso na morte, e, não, não morrerei de pijama, mas de fraque, não se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro. Até lá cogito novas madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Jorge faça um poema. Campa, sim, quero uma campa, grunge, alistado no exército de cruzes entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para frango ou Joana d'Arc.

 

Passa a Ângela no calçadão, trauteio baixo a Alabama Song, pelo retrovisor vejo o Max no banco de trás, grande Max, já partiu, e de fraque, sete Outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!

 

É cruel, a caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso  o aparo mata, invasiva arma contra as palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar  epitáfios, apunhalar palavras errantes  em confidenciais cadernos.  

 

É feriado. Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis os feriados no Inverno, convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta, aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num feriado à noite, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a um copo no bar. O sol, esfíngico, põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, na cabeça ecoa o Alabama Song em looping, talvez o Kurt e o Brecht queiram um bourbon, fico-me pela cerveja à espera da Libertação. Com Visa.


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