sábado, 6 de julho de 2013

O hóspede do Hotel Royal




Apesar de ser já Setembro, a manhã nasceu radiosa na Vila Nova da Praia das Maçãs. O Hotel Royal, fronteiro ao areal, denotava alguma agitação, ali repousava por uns dias o dr.Afonso Costa, chefe do Partido Democrático e figura grada do regime. Em 1912, após uma secessão entre os republicanos, tornara-se o líder incontestado e consolidado o partido, presidia ao ministério desde Janeiro de 1913, o primeiro governo partidário da República, integrado por democráticos e apoiantes de António Maria da Silva.
O mata-frades, como era conhecido pelos inimigos, não era consensual, o seu marcado anticlericalismo gerara ódios entre os conservadores, era o chefe visível da facção radical. Escolheu o Royal pela vista privilegiada sobre o mar e o cheiro a iodo que entrava pela janela de manhã, momento aproveitado para ler o jornal ou ir à esplanada do Grego. Seriam poucos dias, que a política não permitia tréguas, antes avisara o presidente Arriaga.
Na manhã de 23 levantou-se cedo, tomou um pequeno-almoço frugal e leu o jornal, refastelado na varanda do Royal. Surpreendidos pela presença do ilustre veraneante, os hóspedes cumprimentavam respeitosamente, muitos entre dentes suspirando pelo rei D.Carlos e pela ordem velha, porém. No exterior, a defesa civil da Praia das Maçãs, afecta ao partido democrático, montara guarda, Afonso Costa tanto era visado pelo clero, como pelos monárquicos de Paiva Couceiro e até a Carbonária, agora que o PRP se dividira, o parecia ter como alvo. Sebastião Lima e quatro homens armados vigiavam no exterior do hotel, zelando pela sua segurança, movimentação comentada na taberna do Manuel Prego:
-Estes tipos só vêm para aqui atrapalhar o negócio! -resmungou o taberneiro, hirsuto e rude, emborcando um tinto. A um canto, o padre Matias del Campo assentava com a cabeça, na sua Espanha natal era o mesmo. Pelas dez horas, a leitura do jornal foi interrompida pela voz ofegante de Sebastião:
-Sr Doutor, avisam de Sintra que se encaminham para cá anarquistas armados. É melhor que recolha ao seu quarto, não há tempo para voltar para Lisboa! - Sebastião vinha alterado, elementos do partido avisavam que um atentado estava em curso e não havia tempo para chamar reforços. Afonso Costa, já habituado a estas andanças, levantou os olhos do jornal e ironizou, sem se levantar da mesa:
-Nem uns dias se pode tirar sossegado, meu caro? Muito bem. Vêm à pesca mas vão encontrar mar bravo… Não se preocupem, ando sempre prevenido, ainda não esqueci do dr. Miguel Bombarda…-e apalpou o bolso da casaca, onde, previdente, guardava a pistola.
Em Sintra, depois de alertados, grupos de defesa montaram apertada vigilância, mandando parar tudo o que se dirigisse para a praia e revistando as pessoas. As notícias eram de que em separado os revoltosos tinham entrado em diferentes estações de comboio com destino a Sintra, onde se reuniriam. Todo o dia, perante a surpresa dos transeuntes, a agitação dos carros entre Sintra e a Praia indiciava passar-se qualquer coisa, ninguém chegava perto do Hotel Royal, sitiado, as informações eram contraditórias e os boatos delirantes.
Miguel Gaião, Jaime Augusto e Alberto Correia, idealistas de sangue quente, que em separado haviam vindo de Lisboa, lograram chegar de bicicleta a Monte Santos, onde havia um controle de estrada. Surpreendidos, acharam avisado voltar para trás, a coisa estava mais complicada do que imaginavam.
-Diabo, isto está tudo minado! -Jaime, o mais velho, alfaiate do depósito de fardamentos, não contara com a eficiência da gente do mata-frades, melhor seria deixar para outra ocasião. Voltaram para Sintra, tentando apanhar o último comboio para Lisboa, mas um saloio que alugava burros na estação, achou estranha a movimentação dos forasteiros junto à gare, não tinham aspecto de quem fosse visitar o Paço. Avisada a Guarda, Gaião foi quem primeiro se apercebeu de que dois agentes se lhes dirigiam, e avisou os outros:
-Corram, que vêm ter connosco! -e acelerou, seguido dos outros, já em passo de corrida. O Gaião puxou duma arma, escondida na saca a tiracolo e disparou, quase atingindo um guarda num ombro. Porém, mais guardas chegaram do lado da Estefânea, imobilizando-o, desorientados, o Jaime e o Alberto nem tentaram ir mais longe, entregando-se sem resistência. Levados para a esquadra de Sintra, foram-lhes apreendidas pistolas e punhais, e conduzidos à cadeia da comarca. Por essa vez, o Royal ficara longe demais.
 -Não foi desta, será doutra! -vociferou o Gaião, a caminho do calabouço.
No dia seguinte pela manhã, Afonso Costa entrou bem-humorado na tasca do Prego, onde nada do ocorrido em Sintra transpirara, para lá do alvoroço dos acólitos rondando o hotel.
-Bom dia cavalheiros, belo dia para a pesca, não acham? -ajustando os óculos, saudou os presentes com ar matreiro, depois de um café seguiu para um passeio matinal, olhado de soslaio pelo Prego.
O primeiro ministério de Afonso Costa ainda durou até Fevereiro de 1914.Como líder dos democráticos transformou o Partido Democrático no principal partido da Primeira República, e na força dominante até 1926.Sempre na ponta das baionetas. O Hotel Royal ainda subsistiu até 1921, pacato e sobranceiro ao mar, quando um incêndio pôs fim a quinze anos de actividade. Afonso Costa, esse, durou um pouco mais, ainda.

Sem comentários:

Enviar um comentário