Apesar de ser já Setembro, a manhã
nasceu radiosa na Vila Nova da Praia das Maçãs. O Hotel Royal, fronteiro ao areal, denotava alguma agitação, ali
repousava por uns dias o dr.Afonso Costa, chefe do Partido Democrático e figura
grada do regime. Em 1912, após uma secessão entre os republicanos, tornara-se o
líder incontestado e consolidado o partido, presidia ao ministério desde
Janeiro de 1913, o primeiro governo partidário da República, integrado por
democráticos e apoiantes de António Maria da Silva.
O mata-frades, como era
conhecido pelos inimigos, não era consensual, o seu marcado anticlericalismo
gerara ódios entre os conservadores, era o chefe visível da facção radical.
Escolheu o Royal pela vista
privilegiada sobre o mar e o cheiro a iodo que entrava pela janela de manhã,
momento aproveitado para ler o jornal ou ir à esplanada do Grego. Seriam poucos
dias, que a política não permitia tréguas, antes avisara o presidente Arriaga.
Na manhã de 23
levantou-se cedo, tomou um pequeno-almoço frugal e leu o jornal, refastelado na
varanda do Royal. Surpreendidos pela
presença do ilustre veraneante, os hóspedes cumprimentavam respeitosamente,
muitos entre dentes suspirando pelo rei D.Carlos e pela ordem velha, porém. No
exterior, a defesa civil da Praia das Maçãs, afecta ao partido democrático,
montara guarda, Afonso Costa tanto era visado pelo clero, como pelos
monárquicos de Paiva Couceiro e até a Carbonária, agora que o PRP se dividira,
o parecia ter como alvo. Sebastião Lima e quatro homens armados vigiavam no
exterior do hotel, zelando pela sua segurança, movimentação comentada na
taberna do Manuel Prego:
-Estes
tipos só vêm para aqui atrapalhar o negócio! -resmungou
o taberneiro, hirsuto e rude, emborcando um tinto. A um canto, o padre Matias
del Campo assentava com a cabeça, na sua Espanha natal era o mesmo. Pelas dez
horas, a leitura do jornal foi interrompida pela voz ofegante de Sebastião:
-Sr
Doutor, avisam de Sintra que se encaminham para cá anarquistas armados. É
melhor que recolha ao seu quarto, não há tempo para voltar para Lisboa! -
Sebastião vinha alterado, elementos do partido avisavam que um atentado estava
em curso e não havia tempo para chamar reforços. Afonso Costa, já habituado a
estas andanças, levantou os olhos do jornal e ironizou, sem se levantar da
mesa:
-Nem uns dias se pode tirar sossegado, meu caro? Muito bem. Vêm à pesca
mas vão encontrar mar bravo… Não se
preocupem, ando sempre prevenido, ainda não esqueci do dr. Miguel Bombarda…-e
apalpou o bolso da casaca, onde, previdente, guardava a pistola.
Em Sintra, depois de
alertados, grupos de defesa montaram apertada vigilância, mandando parar tudo o
que se dirigisse para a praia e revistando as pessoas. As notícias eram de que
em separado os revoltosos tinham entrado em diferentes estações de comboio com
destino a Sintra, onde se reuniriam. Todo o dia, perante a surpresa dos transeuntes,
a agitação dos carros entre Sintra e a Praia indiciava passar-se qualquer
coisa, ninguém chegava perto do Hotel
Royal, sitiado, as informações eram contraditórias e os boatos delirantes.
Miguel Gaião, Jaime
Augusto e Alberto Correia, idealistas de sangue quente, que em separado haviam
vindo de Lisboa, lograram chegar de bicicleta a Monte Santos, onde havia um
controle de estrada. Surpreendidos, acharam avisado voltar para trás, a coisa
estava mais complicada do que imaginavam.
-Diabo,
isto está tudo minado! -Jaime, o mais velho, alfaiate do
depósito de fardamentos, não contara com a eficiência da gente do mata-frades,
melhor seria deixar para outra ocasião. Voltaram para Sintra, tentando apanhar
o último comboio para Lisboa, mas um saloio que alugava burros na estação,
achou estranha a movimentação dos forasteiros junto à gare, não tinham aspecto
de quem fosse visitar o Paço. Avisada a Guarda, Gaião foi quem primeiro se
apercebeu de que dois agentes se lhes dirigiam, e avisou os outros:
-Corram,
que vêm ter connosco! -e acelerou, seguido dos outros, já em
passo de corrida. O Gaião puxou duma arma, escondida na saca a tiracolo e
disparou, quase atingindo um guarda num ombro. Porém, mais guardas chegaram do
lado da Estefânea, imobilizando-o, desorientados, o Jaime e o Alberto nem
tentaram ir mais longe, entregando-se sem resistência. Levados para a esquadra
de Sintra, foram-lhes apreendidas pistolas e punhais, e conduzidos à cadeia da
comarca. Por essa vez, o Royal ficara
longe demais.
-Não foi
desta, será doutra! -vociferou o Gaião, a caminho do calabouço.
No dia seguinte pela
manhã, Afonso Costa entrou bem-humorado na tasca do Prego, onde nada do
ocorrido em Sintra transpirara, para lá do alvoroço dos acólitos rondando o
hotel.
-Bom
dia cavalheiros, belo dia para a pesca, não acham? -ajustando
os óculos, saudou os presentes com ar matreiro, depois de um café seguiu para
um passeio matinal, olhado de soslaio pelo Prego.
O primeiro ministério
de Afonso Costa ainda durou até Fevereiro de 1914.Como líder dos democráticos
transformou o Partido Democrático no principal partido da Primeira República, e
na força dominante até 1926.Sempre na ponta das baionetas. O Hotel Royal ainda subsistiu até 1921,
pacato e sobranceiro ao mar, quando um incêndio pôs fim a quinze anos de
actividade. Afonso Costa, esse, durou um pouco mais, ainda.
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