segunda-feira, 20 de maio de 2013

O Camião de Biarritz


Notícias sobre as reservas de ouro do país, de volta aos jornais, recordaram a Ulisses as histórias que o avô Geraldo lhe contava, do tempo da guerra. Guarda-fiscal em Elvas nos anos quarenta, muitas vezes ali vira chegar camiões vindos da Europa beligerante, e aí conheceu Auguste Jacquet, um motorista suíço que regularmente viajava para a Península Ibérica, com carregamentos destinados ao Governo português. Elementos da PIDE aguardavam religiosamente a mercadoria a cada dois meses, contava, chegado, dirigia-se geralmente ao tenente Lobato, a quem muitas vezes viu entregar guias, longe da vista da Guarda Fiscal. De soslaio, e invariavelmente, nelas leu várias vezes uma palavra: Campfranc.
Certa vez, Auguste chegou antes da data prevista, antecipando-se ao homem da PIDE. Geraldo, a sós com o suíço, tentou sondar o conteúdo da carga, mas Auguste pouco adiantou, apenas sabia que metia alemães, e caça grossa. Chegou a espreitar o conteúdo, meras caixas de madeira, com dizeres em francês, atafulhando o camião, mas do conteúdo, nada.
Terminada a guerra, as entregas deixaram de se realizar, e Geraldo esqueceu o camião de Auguste. No Outono de 1947, já sargento, reviu-o, ao serviço duma empresa francesa. Vivia em Marselha, e a empresa para a qual trabalhara durante a guerra fechara portas e os donos, alemães, presos depois da libertação. Ocasião para satisfazer velhas curiosidades sobre os carregamentos. Descontraído, o suíço convidou Geraldo para almoçar, e depois duma sesta dispôs-se a falar:
-Vou-lhe revelar um segredo, Sargento Geraldo : os carregamentos que você nunca viu, mon ami, eram nada mais nada menos que lingotes de ouro, enviados pelo Banque National de Suisse para pagamento de vendas portuguesas ao Reich: volfrâmio, conservas, têxteis, muito ouro trouxe para o seu país nesses quatro anos. Só que, vou-lhe contar um segredo, entre as remessas oficiais, havia coisas menos claras, está a ver….
-Não, não estou. O que quer dizer com isso? - Geraldo bem sabia que ali sempre houvera marosca. Auguste, sorrindo, decidiu-se a abrir o jogo, a guerra terminara, e  nada havia a recear já:
-Muitas vezes que larguei de Berna com o carregamento, recebi instruções sigilosas para fazer a rota via Biarritz. Aí deveria ocorrer um reforço de carga, antes do posto fronteiriço de Campfranc. Aliás, não era só eu, outros colegas meus o faziam também, com destino a Fuentes de Oñoro e Valência de Alcântara, outros ficavam em Espanha…
-Mas o que iam carregar aí de especial? Armamento?
-Não…- Auguste fez suspense -Ao principio também eu desconhecia, mas finalmente descobri. Ouro! Lingotes de ouro! Só que este não era para pagamentos, era uma carga especial…
-Como assim?
-Mon ami, durante dois anos, a par de pagamentos da Alemanha ao vosso governo, via Suíça, aqui entraram para cima de 80 toneladas de ouro clandestino! Os alemães controlavam a Alfandega de Campfranc durante a Guerra, um grupo de oficiais da SS e um membro da Gestapo, viviam no hotel da estação, no lado francês. A Espanha não estava em guerra, mas Franco queria retribuir a ajuda de Hitler durante a Guerra Civil, o que se traduziu em facilidades de circulação na Península de ouro de várias proveniências...
Geraldo ouviu, matutando sobre o que teria isso a ver com o nosso país, a resposta veio célere:
-Portugal também esteve envolvido, e para cá vieram mais de setenta toneladas de ouro, prata, armas, relógios, etc, mas atenção: riquezas que altas patentes alemãs haviam confiscado a judeus em campos de detenção no Leste, e com as quais pensavam garantir o futuro depois da guerra. Os nazis permaneciam do lado da França ocupada, em Campfranc, aguardando os envios, viviam na estação e até chegaram a realizar lá concerto para ocupar o tempo, estavam lá apenas para despachar o ouro e outras coisas saqueadas aos judeus a salvo. Até dentes de ouro, e relógios!. Depois, não sei o que sucedeu, no fim da guerra muitos deles fugiram para a Argentina e Brasil. Quanto ao ouro… alguém está hoje a fazer uma vida regalada com ele, por certo. É assim a guerra, meu amigo, o azar de uns é a sorte de outros!
Geraldo, nada disse, a sua posição impedia-o de criticar a colaboração da temida PIDE em manobras no mínimo irregulares. Despediu-se de Auguste, e voltou para o seu posto. Seria a última vez que o veria. Meses mais tarde, Auguste aposentou-se, e foi viver de vez para Saint Moritz. Nessa mesma noite, em Elvas, depois do serviço, Geraldo dirigiu-se a uns barracões que tinha construído para os lados da Achada, ali passaria os dias criando galinhas, quando a reforma chegasse. Munido de um candeeiro a petróleo, entrou num deles, onde logo agitadas poedeiras saltaram espavoridas, dois ovos para uma açorda estavam a jeito. Atrás dum tijolo, e enterrado num buraco, um saco de pano guardava aquilo com que no futuro compraria muitos ovos, se preciso fosse: um lingote em ouro, amarelo e reluzente. Tanta viagem do Auguste aguçara-lhe a curiosidade e certo dia em que o apanhou desatento, descobriu com espanto o conteúdo dos misteriosos caixotes. E ladrão que rouba a ladrão….
Os anos passaram, já com mais de setenta, Ulisses, o neto de Geraldo, de novo ouvia falar do ouro de Salazar. Sorriu, com um ar maroto. Não fora Salazar apenas o único previdente. E nem de propósito, era altura de visitar as propriedades de Elvas, herdadas do avô, a ver se continuava a haver ovos no galinheiro…

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