Passam a 15 de Dezembro 130 anos
do falecimento de D. Fernando II, o rei de Sintra.Aqui reedito um texto por mim
inserto no meu livro "Histórias Com Sintra Dentro", onde de forma
romanceada reconstituo o último dia de vida do monarca.
Envolvo
num grosso jaquetão e com o chapéu enterrado até às orelhas, desafiando o
invernoso Dezembro, D. Fernando saiu das Necessidades com ar cansado e o rosto
deformado pela doença. Elise não quis ir, mas nem o frio e as dores o demoveram
da récita em S. Carlos, para ver “Os Huguenotes”, de Meyerbeer. S. Carlos era a
sua segunda casa.Em S. Carlos estivera com Maria, em S. Carlos se apaixonara
por Elise, logo enviando um bilhete ao Fraschini, para que lha apresentassem.
-Para
S. Carlos, Majestade? -perguntou o cocheiro, reverente.
-Não,
ainda não…-respondeu, com voz trémula -Vamos primeiro pelo
Rossio, preciso de apanhar ar, vai andando por aí até eu dizer, que ainda falta
uma hora...…
Nessa
noite estava particularmente melancólico. Lembrava o filho Pedro, precocemente
colhido pela morte, a corte, que nunca aceitara Elise, mesmo depois de a fazer
condessa, os ódios de Maria Pia e suas fúrias latinas. Regressara recentemente
da Alemanha, onde visitara Antónia, em Sigmaringen, e na véspera voltara a
falar com o Serpa Pimentel sobre o testamento, um lento adeus estava já em
curso.
Lisboa
estava deserta nessa noite fria, a récita não esgotaria e as tosses em S.
Carlos seriam poucas, por certo. O elenco era razoável e o libretto em
torno dos amores de Valentine e Raoul. Como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta,
Daphne e Chloé. Ou Fernando e Elise…
Elise.
Antes de sair das Necessidades tomaram chá na biblioteca. Passara o dia
cansado, ofegante, olhava e em volta via sombras desfocadas, mirando-a,sentada
na bergére roxa, a custo lhe desvendava o vulto. A mão quente e
macia confirmava a certeza duma paixão de anos, flirtando-a primeiro, e
desposando-a depois, contra tudo e contra todos.
-Fernando,
não devia sair nesse estado! –advertiu Elise, maternal. As noites estão
frias e…
-Mas a
música é quente, Elise. Só a música me aquece, por estes dias….
E
fechando os olhos, relembrou outras noites em S. Carlos, os saraus na Pena,
Paris. Arfando no cadeirão, pareceu escutar uma orquestra invisível, e qual
maestro regendo, as mãos dançaram no vácuo, trémulas e já magras de carne.
-Elise,
diga-me, meu anjo, têm vindo flores da estufa da Pena?
-Todos os
dias, Fernando. Apesar do Inverno, todos os dias um estafeta vem trazer plantas
da feteira, para os arranjos do palácio.
O velho
rei sorriu. De todas as obras a que se dedicara, nenhuma como essa lhe dera
tanto prazer. O Eschwege e o Cifka eram homens de bom gosto, mas fora ele quem
idealizara sala a sala, pintura a pintura, um portentoso ninho à semelhança da
sua Gotha natal. Pouco lá ia, agora, a viagem cansava-o e Kessler
desaconselhava, um resfriado traiçoeiro poderia agravar-lhe a saúde, já frágil.
-Deve
estar lindo, o jardim...-pensou. E lembrou o eucalipto plantado no dia
do casamento, marco de amor de almas que tardiamente se encontravam. Ele já
viúvo, estrangeiro num país de querelas, dedicado aos seus quadros e
partituras, ela, a jovem promessa lírica que um dia o Lusitânia trouxe a
Lisboa.
Tossindo,
pediu mais um chá, Elise insistiu que se deitasse, cancelando S. Carlos. Sentia
náuseas, incómodas dores no rosto, como se uma tenaz castigadora o apertasse.
Resistiu, há já dois meses pensava ver essa récita. Levantou-se, e saiu na
berlinda, cearia no regresso.
S. Carlos
deslumbrava, com a parafernália de dourados, serafins e veludos. D. Fernando
ocupou o seu camarote, enterrou-se no libreto, e ignorou os cortesãos
bajuladores, que o saudaram da plateia. A função foi um sucesso, sete minutos
de palmas e chamadas ao palco, noite cheia, afinal de contas. Ao sair do
camarote, tropeçou num degrau e caiu desamparado, batendo com a cabeça na
parede. Ainda atordoado, pareceu-lhe ver, disforme, uma valquíria que lhe
estendia a mão, ao lado uma outra tocava harpa, e sentiu-se levitar,
lentamente, um violoncelo invisível chorava a sua música favorita. Deu a mão à
valquíria e dançando com as mãos, regendo a orquestra, suspirou, sorrindo,
antes de entrar em coma: Elise….
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