Uma reunião com um advogado amigo nas Avenidas Novas, levou-me a Lisboa por estes dias ao
prédio contíguo àquele onde vivi muitos anos, quase desde que nasci. O velho
edifício dos anos vinte ainda lá está, hoje ocupado com escritórios, e por
momentos vi-me de volta a um passado sépia com mais de quarenta anos.
Há muito moro perto
de Sintra, numa casa de Verão que com o tempo passou a ser permanente, Lisboa
agora só para ir ao teatro ou ao tribunal, e francamente, não desejo voltar.
Não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz.
O prédio lá está,
recheado de memórias e sons dum passado adormecido. Lembrei-me do enorme
corredor da casa onde cresci, com oito assoalhadas e duas criadas que o meu avô
mantinha em sentido. Com ternura revi as brincadeiras no quintal das traseiras,
a única entrada autorizada aos empregados e ao leiteiro com as vasilhas de
metal, cheio de patos e galinhas nas capoeiras, quando a cidade era rural
ainda, e no Natal ficava povoada de perus que previamente embriagados seguiriam
para o jantar da consoada. E lá está ainda o prédio da minha velha escola
primária, na rua contígua, que saudades da D. Inês e do bibe branco, do bivaque
da Mocidade, cujo significado desconhecia, do carocha do meu pai, das cadernetas de cromos e do Cavaleiro
Andante. Tudo desaparecido, arquivado em velhas fotos, ou definitivas lápides
de cemitério. A igreja de Fátima lembrou-me as missas de domingo com minha avó,
a primeira comunhão, o crisma, os veludos roxos que durante a Semana Santa
cobriam os santos, para tudo acabar num suculento borrego no domingo de Páscoa.
A reunião tardou, e
dei comigo a deambular pelo escritório do colega, lembrando personagens há
muito levados: o Chico polidor, enfrascando-se na leitaria do Narciso, o
Almeida da mercearia, do açúcar mascavado, a casa do doutor Ruah, refugiado da
guerra, e os amigos de infância, na minha lembrança sempre miúdos e de calções, e
a quem perdi o rasto, um ou outro penso já ter visto no Facebook, mas não ousei averiguar, prefiro-os depositados no
passado, na secção de boas memórias e na prateleira da saudade. Ao toque dum
sino, recordei a primeira comunhão, com apenas sete anos, quando na igreja de
Fátima tive de confessar terríveis pecados mortais, o afogamento de uns coelhos
recém-nascidos que com a Lígia e a Aida atirei ao poço, julgando serem ratos, e
me valeram uma iníqua tareia, depois de libertar o quintal de roedores.
Foram tempos felizes.
Os jantares de Natal em família, avós, netos, criados ou os primos do Alentejo,
ou o dia em que feita a quarta classe o meu avô me ofereceu um relógio e fez um
depósito de cem escudos no Montepio, para levantar só quando chegasse a
maioridade. E a vaga sensação de que apesar de feliz, nem tudo corria bem. Uma
guerra em África de que nada sabia, até o tio Artur ter sido mobilizado para
Angola, o Zeferino, meu explicador de matemática, que estivera preso num tal
Tarrafal, e aquele dia em que toda a família foi à estação do Rego acenar com
lenços brancos ao comboio que levava o caixão dum importante senhor que caíra
duma cadeira e ia a sepultar em Santa Comba. Veio Abril e a adolescência
esperançosa, sonhos e lutas, a licenciatura em Direito, projectos cumpridos e
por cumprir, o mundo cresceu para fora das Avenidas Novas e fui até onde os
aviões e a vontade me levaram, sempre retornando, e sempre partindo.
Os fantasmas à solta
nas Avenidas Novas recolhiam agora, finalmente a secretária do Frazão chamava
para a reunião, amável, veio receber-me:
-Meu
caro, desculpa o atraso, o trânsito, sabes…. eu sei que és um homem lá da
linha, és um sortudo, sabes lá o inferno que é trabalhar em Lisboa. Deste com a
morada facilmente?
Sorri, e fui entrando,
sem pressas:
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