NOS 48 ANOS DO INCÊNDIO DA SERRA DE SINTRA
6 de Setembro de 1966, Sintra era notícia na imprensa nacional e estrangeira, violento
fogo lavrava com intensidade brutal na Penha Longa, Lagoa Azul e Capuchos,
favorecida por elevadas temperaturas e constantes mudanças de vento. Seteais,
Monserrate, a Pena e até S. Pedro, estavam em risco, e todos os corpos de
bombeiros do distrito de Lisboa mobilizados, aos quais se juntaram homens das
Caldas, Elvas e Leiria, forças militares e civis, num total de quatro mil
homens. Sitiada, Sintra era pasto das chamas que assassinas cruzavam o ar e a
vila de turistas e veraneantes transformada em quartel para uma batalha que
durou seis dias, lançando cinzas e fumo a quilómetros, sob um clarão enorme e
infernal.
Por esses
dias, Luís fazia a tropa em Queluz, a vida do quartel repartida entre serviços
rotineiros e a angústia por uma chamada para o Ultramar. Aos vinte anos e noivo
da Angelina, a oficina de torneiro do tio haveria de chegar para começo de
vida, se tudo corresse bem, uma casa em Queluz estava debaixo de olho. O
incêndio apanhou-o no quartel, o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa de
Queluz, onde durante toda a manhã do dia 6 se escutaram sirenes. A Emissora
relatava danos na vertente de Cascais, mas por toda a serra focos se espalhavam
incontrolados, populares com ramos de árvores, cansados e impotentes, faziam o
que podiam. Preparava-se para almoçar uma feijoada quando o comandante de
batalhão mandou formar na parada, era preciso acorrer ao fogo, todos os meios
estavam a ser mobilizados. Reunidos em viaturas, saíram a dar apoio. A
abundância de mato por limpar ajudava a propagar as chamas, Luís, com mais
alguns homens foi enviado para perto da Peninha, se bem que se denotasse no
tenente que comandava insegurança sobre onde atacar e quando. Os comandantes
dos voluntários dividiam-se sobre a frente prioritária, apagado num lado por
viaturas em idade de reforma, reacendia logo noutro, e zonas antes cerradas
eram agora clareiras incandescentes. Envolta num braseiro, a Tapada do Mouco já
pouco tinha de verde. O Antunes e o Fernandes, do pelotão de Luís, rudes e
habituados à mata, ajudavam a dar luta, inglória porém, Lúcifer parecia ter-se
mudado para Sintra levando o inferno até lá. Nessa noite, pernoitaram na serra,
poucas e inseguras horas, senhoras do Penedo alcançaram leite e pão com
presunto. Passando no local, um jornalista dizia ao major que se falava em
decretar o estado de sítio, e mandar vir homens de Santa Margarida, tais as
proporções que o fogo tomara.
Durante todo
o dia 7, exaustos e sem coordenação, Luís e os camaradas quais baratas tontas,
acorreram aonde o tenente ordenava, a chuva de Setembro, que tão necessária
era, tardava em aparecer. Segundo os comandos, cinquenta quilómetros estariam
sob o pasto das chamas, vestígios na Lagoa Azul indiciavam origem criminosa. O
Antunes transpirava, de galho na mão, asfixiados pelo fumo, dois cabos tiveram
de ser assistidos e voltar para o quartel. Luís fazia o que podia, pensando
quando tudo terminaria. Todo o dia a serra ardeu. Chegada a noite, o clarão
laranja do apocalipse voltou a sentir-se no seu belo horrendo, persistente, o fogo
levava a melhor. Motobombas dos Lisbonenses passaram por eles em correria e
reposta a água necessária, concentraram-se num local elevado, mas perigoso.
Temerário, o
tenente mandou avançar para o Alto do Monge, tentaria um corta-fogo, e aberta
uma frente, combater fogo com fogo, esse inimigo sem pernas nem balas, a
estratégia pareceu adequada. Todos os homens se colocaram no epicentro do
incêndio, bombeiros e civis protegiam as povoações. Aos poucos, perdiam-se cem
anos de floresta, visto de Cascais, era o juízo final. A dada altura, o Antunes
gritou por trás dele, uma mudança do vento criara nova frente ali perto. Luís
ficou apreensivo. Fogo pela frente e pelos lados, uma coluna de fumo por trás,
o tenente ordenava que se mexessem, ele próprio tentava posicionar-se. Mais
vinte e um camaradas estavam no penedo perto da anta do Monge, por ironia
chamado Cerro da Queimada. Aumentando o calor e o fumo, deixaram de se ver uns
aos outros, gritos lancinantes abafados pelo fogo invasivo anunciavam o Inferno
colhendo novas vítimas, impotentes anjos naquele Setembro negro. Afogueado,
Luís viu-se perdido, já não via nem ouvia os camaradas. De relance, pensou em
Angelina, olhou o céu, vermelho, e absorto sentiu-se levar, colhido e febril.
Possuída, a serra de Sintra ganhava mártires e os homens, heróis. Até que
Lúcifer, desperto, regresse, ameaçador e inclemente, faminto de carne
esturricada e impotente. Regressará?
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