quarta-feira, 24 de abril de 2013

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito, e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, em Cavalaria, o ramo onde uma besta em cima e outra em baixo, como dizia o avô, veterano da Primeira Guerra. A viagem desde o Alentejo até nem era longa, mas a perspectiva de ir parar a África não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, conterrâneo de Castelo de Vide, mas a hipótese de ir para o Ultramar, finda a recruta, era incerta ainda, as coisas estavam acesas na Guiné desde que o general Spínola de lá saíra e editara um livro que deixou muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham ocorrido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores sabia atar, com espinha bífida e óculos graduados, estava como um papagaio em capoeira, suportando, estoico, a solha frita à quinta-feira e o Fernandes a ressonar e a fazer as camas à espanhola.

Nessa quarta-feira a ordem de recolher foi às nove, antes, telefonou a Mariana para que o esperasse  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores, e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, vida estúpida para quem não queria fazer carreira, a farda feijão verde alvo de troça em Santa Apolónia. Não conseguiu dormir logo, havia barulho na messe dos oficiais, noite de copos pela certa, o Passos estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, o segundo-comandante, furibundo, atravessou a parada aos gritos, a fazer a folha a algum, por certo, Cavalaria não era mole, e Santarém era elite. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, Tancos ou Santa Margarida, outros para África, onde Nambuangongo fora  coisa séria.

Já perto da uma, o Passos tardava e uma algazarra soou, vinda da parada, o tenente Barbeitos, apareceu aos gritos à  porta da caserna a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado. Aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau.

No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, seu patrício, enfiado num camuflado e falando em murmúrio com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos homens na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham a recruta completa, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. A nossa missão visa devolver a dignidade ao povo português, e demitir o governo que tarda em arranjar soluções para os problemas inadiáveis do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, um golpe militar. Que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas, e se falhassem? Mal tinham feito instrução de tiro, o Forte de Elvas parecia ser o fim certo para a noctívaga aventura. Ninguém deu um passo atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Óptimo! -saltando para o Chaimite, mandou avançar para a porta de armas. Pouco passava das três da manhã, e nessa noite, pelos vistos, não haveria camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez blindados e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e um jipe, saía amotinado para Lisboa. Tudo isto era confuso, mas excitante, com sorte, talvez ainda essa noite bebessem um copo no Cacau da Ribeira, pensou Artur.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia olhou para a coluna mas não interferiu, manobras com certeza, não houvera nenhum alerta. O Passos e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posição no Terreiro do Paço, já matinais carrinhas com legumes se dirigiam ao Cais de Sodré. Salgueiro Maia, sem encontrar grande oposição, contactou um misterioso Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem e sem oposição, até o comandante distrital da PSP veio oferecer colaboração, descongestionando o trânsito, com o amanhecer, o 28 para a Graça cruzara já a praça, deixando o guarda-freio surpreso com o aparato. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, à frente duns recrutas de surpresa virados contra o  Império.

Começando a chegar gente aos ministérios, alguns oficiais afectos ao governo apareceram a desafiar os amotinados, chegando a aquecer o ambiente com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar camaradas fez passar os Panhard para o lado dos de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se agora símbolo de tenacidade e dum orgulhoso verde-esperança.

À medida que as notícias se espalharam, as pessoas invadiram as ruas. Com um frémito na espinha, viu a Mariana a acenar-lhe, de lágrimas nos olhos, perto da R. do Arsenal, o copo no Jamaica chegaria mais cedo, por certo, recruta-herói em instrução nocturna. Um beijo, soprado de longe, foi a silenciosa confirmação do sucesso.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Passos e aos demais camaradas do esquadrão. Uma florista no Rossio ofereceu-lhe um cravo, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo colectivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou apressado do beliche para um encontro com a História.

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