segunda-feira, 22 de abril de 2013

A cabala


Eliminar o caos, a dor, o sofrimento, tal o desígnio do engenheiro Ezequiel Levi, judeu e cabalista nas horas vagas, intérprete do Livro da Formação, o Sepher Yetsirah dos seus antepassados marranos, iniciado maskilim e céptico do Talmud. Encafuado no seu retiro da Ulgueira, em cada frase das escrituras descortinava sentidos escondidos, e ao procurar reconhecer fontes negativas na mente e coração, acreditava estar a contribuir para uma interioridade positiva, livre de egoísmos e próxima de Deus. Tardiamente separado de Greta, uma norueguesa com quem casara no tempo em que trabalhara numa plataforma petrolífera, reformado e dado às espiritualidades, vivia junto ao mar, com um gato e uma governanta, a Cecília, que de tudo o aliviava para que se dedicasse aos seus estudos e elucubrações. Já entrado nos setenta, como ela, divorciado e sem herdeiros, fizera testamento a favor da governanta, deixando-lhe a casa da Ulgueira uma vez que partisse, só ela o aturava nesse fim de vida, era justo que por tal fosse recompensada. Jurando nada querer, Cecília ia aguentando as taras de Ezequiel, ciente de que, apesar das excentricidades, a segurança de uma casa compensaria a sua paciência de santa. Em dias de maior excitação, Ezequiel procurava doutriná-la, mas Cecília, simples e de poucas letras, era doutorada sobretudo nos pastéis com que aconchegava o estômago do aprendiz de cabalista:
-Sabes, Cecília, a Cabala ensina-nos que todo o ser humano é uma obra em execução. Qualquer dor, desapontamento ou caos que exista nas nossas vidas, não ocorre por fatalismo, mas apenas porque ainda não terminámos o trabalho que nos trouxe até aqui. É preciso libertarmo-nos do egoísmo e criar afinidade com Deus!
-Senhor Ezequiel, eu para mim, já faço a minha parte. Todos os domingos assisto à missa aqui na Ulgueira, e sou muito devota de Nossa Senhora do Cabo, fique sabendo! -rematava a velha criada, para quem os calhamaços espalhados pelo chão mais não eram que um entrave para limpar o pó, tudo queimado ainda era pouco, pensava.
-É preciso a verdade, enfrentar o mundo com paciência, ter empatia com o nosso semelhante…- repetia-lhe, esbracejando pela sala, enfiado num roupão de cetim que lhe conferia um ar aristocrático.
-Sim, sim, lá empatia não tenho, graças a Deus, que o Dr. Botelho diz que estou rija, felizmente, mas olhe, até costumo ajudar o Exército de Salvação de Colares, e tudo…
Aluado, Ezequiel mergulhava na obra do rabino Kook, o primeiro rabino ashkenazi de Israel e fundador da Merkaz Harav. Devorando versões traduzidas do Livro da Criação, de Abraão, o Sefer Yetzirah, e do Bahir, do rabino Ben Hakana, Ezequiel procurava a paz e a verdade de que andara afastado em anos de vida materialista e mundana, dependente do álcool e com uma relação atribulada com Greta, que voltara para a terra natal depois do divórcio, ambos já entrados nos sessenta.
-O Zohar diz-nos que a alma humana possui três elementos, o nefesh, o ru'ach, e o neshamah. O ru'ach, a alma mediana, contém as virtudes morais e a habilidade de distinguir o bem e o mal. Como achas que está o teu ruach, Cecília?
Cecília encolhia os ombros, já habituada às excentricidades. Não fosse a promessa de herdar a casinha, depois dele bater a bota, e já se teria despedido.
Alguns meses ainda durou Ezequiel, devotado aos seus livros e estudos. Procurando uma tardia redenção no fim dos seus dias, sabedor de ter uma doença terminal, refugiava-se no estudo da alma, diariamente visitado pela Cecília, que lhe fazia a lida da casa e as refeições, voltando para o marido ao fim da tarde.
Um final de tarde, já no Verão, Ezequiel finou-se, em paz, partindo finalmente para a terra do Deus de Abraão. Como combinado, Cecília providenciou-lhe um enterro judaico, em Lisboa, aos livros e papéis encaminhou para Sintra, à guarda do Arquivo Histórico, que em sua homenagem abriria uma sala na biblioteca. O principal seria passar a casa para seu nome, uma vez lido o testamento do qual era única beneficiária, e foi isso que procurou tratar no cartório. Para pasmo da devotada governanta, do testamento cerrado constavam apenas frases enigmáticas da cabala, e a doação dum serviço de mesa que Cecília tanto gabava. Com medo de a perder e aos seus cuidados, Ezequiel nunca confessara que a quando do divórcio de Greta, a casa da Ulgueira ficara para ela, com reserva de usufruto em vida do engenheiro.
Depois de morto, o safardana pregava a partida à desinteressada Cecília, revelando que a sua alma mediana, esse ru'ach da virtude, do bem e do mal, mais que prática assimilada, não passara afinal de sórdida judiaria enredada por uma tortuosa cabala, movida não pela prática do bem e da redenção, mas mais atenta aos valiosos e quase gratuitos préstimos de fada do lar e seus divinais pastéis de feijão.

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