sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Em Desacordo Ortográfico


Com o início de novo ano foi adoptado pela Administração Pública o famigerado acordo ortográfico, que em 2015 será supostamente generalizado a todos os sectores de actividade. Camões e Castilho adoptaram a escrita fonética, Herculano a etimológica, em 1911 uma reforma ortográfica, conhecida como Reforma de Gonçalves Viana, aboliu muitas das duplas consoantes e privilegiou a pronúncia em prejuízo da etimologia, como ocorreu durante a Idade Média. O Brasil ficou de fora dessa reforma e seguiu ortografia diferente, sendo que em 1940 Portugal adoptou um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e em 1943 o Brasil um Formulário Ortográfico. Em 1990 foi adoptado um novo acordo ortográfico, que privilegia o critério fonético em detrimento do etimológico, em vigor no Brasil desde 2009 e ratificado pelos países de língua oficial portuguesa em 2010. Em Portugal, adoptado gradualmente nos meios de comunicação social, o acordo modifica 1,6% das palavras do português europeu e 0,5% das do português do Brasil, entre 110.000 palavras estudadas.
Está em curso uma iniciativa legislativa de cidadãos que visa levar à Assembleia da República a discussão sobre o Acordo visando eventualmente a sua suspensão (ver em http://ilcao.cedilha.net/ ) e que convido a subscrever, até porque sendo o Acordo Ortográfico uma convenção internacional depende antes de mais da sua entrada em vigor na ordem jurídica internacional, o que ainda não ocorreu por Moçambique e Angola não o terem ratificado, recusando os efeitos do protocolo modificativo de 2004 que prevê que entre em vigor desde que três países o ratifiquem. Acresce que o próprio acordo exige que antes da sua entrada em vigor os Estados signatários assegurem a elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, o que não foi feito sequer.
É o uso e o senso comum que faz uma língua, e  mais importante que a ortografia é a dinâmica linguística que faz, por exemplo, que sejam indiscriminadamente introduzidos muitos anglicismos sem tradução adequada, decorrentes do mundo globalizado onde as expressões económicas ou informáticas entram sem sequer se dar muito ênfase à sua tradução, acentuando um novo-riquismo cultural e o peso das relações de força dominantes (rating, bullying, carjacking, upload, delete, ipod, e muitas outras). Por outro lado, foi alguma vez redutor para a expansão do inglês a existência de um inglês britânico, americano, africano ou caribenho? Ou o castelhano da Europa e o da América Latina?
A diferença enriquece, e é património. Afirmar uma unidade fonética é falacioso pois um português, angolano ou brasileiro pronunciará sempre a mesma palavra de forma diferente, e não é por escrever diferenciado que um português não entenderá um livro de Jorge Amado ou um brasileiro um de Lobo Antunes, as diferenças aí serão culturais, ressaltando-se mesmo que por vezes a língua se torna difícil de apreender não pela grafia mas dentro do seu grupo de falantes pelos regionalismos ou pelas expressões caídas em desuso e produto de épocas históricas. Aliás, se o critério era dar primazia ao fonético porque não caiu o h em homem, húmido ou outras em que o h é mudo?
Por estes motivos, enquanto não for legalmente imposto o uso da grafia revisionista inventada para dar trabalho aos editores, continuarei a utilizar o português de Sebastião da Gama, Agustina, Lobo Antunes e Cardoso Pires. Facciosamente.

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