O momento que vivemos tem que representar uma
viragem no lodaçal esquizofrénico em que a nossa vida colectiva se transformou. Falta a esperança, essa palavra talismã,
e falta mostrar o osso com que, como o cão de Pavlov, de novo haveremos de voltar a ladrar. Para que tal aconteça, há que levantar do sofá, largar o comando da televisão e o asténico isolamento das redes sociais, silencioso espaço para gritar
desesperos, buscar cumplicidades, e, todavia, nada decidir que altere o pathos
dum reino de novo cadaveroso de anormal normalidade.
Antes de um inesperado Abril, muitos de nós lutaram contra a liberdade
raptada, uma guerra anacrónica e por um futuro que por gerações nos foi
negado, numa lógica de inevitabilidade por entre saudados costumes de brandura, que escondiam um povo amordaçado mas secular lutador. Um dia,
fruto dessa guerra, surda mas germinal, tudo voltou a ser possível, e o Futuro
teve rosto, calendário, protagonistas, muitos cães e muitos Pavlovs, ladrou-se
e latiu-se, e apareceram ossos, carne, ração. Fez-se a democracia, mudaram-se retratos, discursos, atitudes, e, ao sétimo dia, o povo descansou, contente com a obra feita, e entregou-se à volúpia consumista,
ao hedonismo egoísta, à anomia social, de bom selvagem, o indígena ficou tão só selvagem, com casas T3 em Massamá, férias no Algarve ou carro novo cada três
anos. Barato, o vil metal abundou, o maná igualmente, triunfantes mas cegos pelo sol, havia-se
alcançada a Terra Prometida, depois de anos a errar no deserto depois dos grilhões do faraó. Silencioso, porém, o veneno dos inimigos fervia no caldeirão, acelerado pelo novo metal da Europa
e pelos trinta dinheiros com que a
ele nos rendemos, finalmente leais a César, e nas suas teutónicas mas
capciosas mãos. Um dia, legiões de cobradores chegaram a cobrar o
dízimo, e, qual Sodoma, tudo ruiu então,
transformado em sal e às mãos dos que na penumbra manobravam, sabendo da fraqueza dos deslumbrados.
Como na caverna de Platão, onde agora, cegos e aprisionados uivamos a perda
e buscamos um rumo, haverá de chegar a luz, do fogo primeiro, mas
cristalina e pura, e anunciando um novo dia, depois. Mas tal não virá de sortilégio do Olimpo, antes imporá a necessária revolta dos escravos, o quebrar das algemas, a união
denodada e sem temores. Imporá pôr à prova se os escravos merecem ser um país ou, erráticamente, mero
quilombo de deserdados em fuga e com liberdade vigiada.
Os dias são de
desespero e de spleen, chamamentos de Circe e apelos à fuga de Ítaca, para, assustados, sulcar
fronteiras, ziguezagueando a vida e trocando voltas ao futuro, dias de sofrimento,
exaustão, entre a loucura e a entropia, o estilhaçar de sonhos ou o seu
cruel adiamento. É chegado o momento da renovação, do regresso da alva Iemanjá e dum assomo
de magia que faça das fraquezas forças, dos rebeldes líderes, das ideias planos
e deste rincão desígnio. O grande exército do Futuro, dos que se
indignem com consequência, ajam com sabedoria, tracem planos consistentes e de
diferença, e que, reconquistada a chama, a reponham na pira sagrada onde se
venere a dignidade e perspective um Devir.
Um calendário é uma sucessão de luas e sóis, chuvas e
secas, colheitas e gestações, e o inóspito inverno em que um tentacular inferno capturou as nossas vidas e as mantêm longe de Ítaca, num mar encapelado, de Circes e Polifemos, ventos gélidos e trovões açoitantes cerceia-nos e fustiga.
Mas, ao Inverno sucederá a Primavera, e de novo o Verão. Lento e silencioso, o
Futuro prepara o seu caminho.
A esperança sem mobilização, equivale a resignação. Uma
solução há apenas: a de sermos militantes cavaleiros da esperança ou inúteis escravos da resignação. Avancemos pois, convocados que estamos para a sagrada missão de porfiar Futuro e capturar a Luz, para tanto levantando firmes a cintilante espada da dignidade.
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