terça-feira, 5 de abril de 2022

"Um morto é uma tragédia, um milhão é uma estatística"

Esta frase é atribuída a Estaline, e encerra o cinismo de quem olha para a destruição da vida humana como um jogo de tabuleiro.

O que acontece por estes dias em solo europeu parece saído dum filme sobre Gengis Khan, dum pogrom do início do século XX, ou dos violentos combates na Bósnia, no Ruanda ou no Camboja. A banalização do Mal enquanto realidade e hoje objeto do voyeurismo das redes sociais, convoca-nos para uma reflexão sobre o que séculos de dita Civilização fizeram a um quadrúpede que virou bípede, mas que descobriu também que a mão que abraça e constrói, também dispara e mata, talvez de forma mais rápida e salivante.

Como escreveu Hobbes, o Homem é o lobo do outro Homem, e por muito que queiramos deitar séculos de iluminismo e racionalidade por cima deste Animal Aflito, a pulsão destruidora prevalece muitas vezes sobre as conquistas da dita fraternidade, ou do Governo de Todos e para Todos, reforçando que a ilha de Paz e da Harmonia chamada Utopia é o que sempre foi. Utopia.

Bem podemos reagir com indignação, expressar solidariedade, esboçar que no fundo de cada um de nós ainda há motivos para acreditar na natureza humana, quando logo a ficção se nos revela como crua realidade, como se a Paz fosse um karma para os mansos e a guerra a afirmação para os fortes.

Por estes dias de adiada Primavera, a tribo terráquea diverte-se no seu Zoo, donde exala o fumo das armas tonitruantes, o cheiro a gás e a petróleo, por entre a reserva mental dos próceres e a estupefação dos incrédulos, acompanhando a guerra qual série de streaming no conforto e anestesia dum smartphone, da informação sem contraditório, ou maquiavelicamente imbuída do pior que o ser humano transporta- ódios, invejas, a vã cobiça.

Como na Caverna de Platão, os inocentes de Bucha e Mariupol desfilam acorrentados ou mortos, muitos, no chão gélido da terra cobiçada, olhando o destino como o fundo da caverna, sem se poderem ver uns aos outros, num teatro de sombras onde se debatem como prisioneiros da realidade, desesperando pela Luz salvadora, que os não cegue, mas salve.

Distantes, somos impotentes, por mais cobertores que mandemos, crianças que acolhamos, ou vigílias a que nos juntemos, enquanto os adultos na sala tergiversarem sobre os negócios que hoje ou no futuro farão ou deixarão de fazer, os artigos quintos de semânticos tratados tornados papel de embrulho, ou sobre o armamento em stock que há para escoar, logo produzindo novo, e assim alimentando e premiando a besta que deveria estar castigada.

Ainda não chegou a madrugada para os lados do vento Leste.


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