sexta-feira, 3 de maio de 2019

Freguesias, Dinheiros e Identidades


Foi recentemente publicada a Lei 57/2019 que prevê a atribuição de novas competências às freguesias, numa lógica de descentralização e subsidiaridade, e com natureza de permanência, abrangendo áreas como as da gestão e manutenção de espaços verdes, limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros, manutenção, reparação e substituição do mobiliário urbano instalado no espaço público, (com exceção daquele que seja objeto de concessão), gestão e manutenção corrente de feiras e mercados,  realização de pequenas reparações nos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico, manutenção dos espaços envolventes dos estabelecimentos de educação pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico ou utilização e ocupação da via pública.
Também o licenciamento da afixação de publicidade de natureza comercial, (quando a mensagem esteja relacionada com bens ou serviços comercializados no próprio estabelecimento ou ocupa o domínio público contíguo à fachada do mesmo), a autorização da atividade de exploração de máquinas de diversão ou colocação de recintos improvisados, realização de espetáculos desportivos e divertimentos na via pública, jardins e outros lugares públicos ao ar livre, acampamentos ocasionais, realização de fogueiras e lançamento e queima de artigos pirotécnicos poderão passar a ser competências das freguesias, tudo resultando do interesse e negociação entre quem delega e é delegado, pois questões de fundo se colocam: a capacidade administrativa e técnica das freguesias para assumir as novas responsabilidades, a tensão que pode existir decorrente de funcionários municipais poderem não querer mudar para as juntas, e de o envelope financeiro a pagar ou a receber ser desinteressante para uma ou ambas as partes, sem por de lado os conflitos eventualmente decorrentes de no período da negociação existirem forças políticas de diferentes cores de ambos os lados, prontas a esticar a corda e a um braço de ferro.
Será no prazo de 90 dias corridos após a entrada em vigor do novo decreto-lei que câmara e juntas de freguesia devem acordar numa proposta para a transferência de recursos para as freguesias, a qual deve conter a indicação dos recursos humanos,    patrimoniais e financeiros que, anualmente venham a ser transferidos para cada uma das freguesias.
As deliberações autorizadoras da transferência de recursos serão obrigatoriamente comunicadas pelo município à Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL) até 30 de junho do ano anterior ao do início do exercício da competência pela freguesia, para efeitos de inscrição no Orçamento do Estado do ano seguinte, o que significa que ultrapassado esse prazo este ano, já o Orçamento de 2020 os não poderá contemplar, caso em que a DGAL procederá à inscrição no Orçamento do Estado do ano seguinte, dos últimos montantes que tiverem sido comunicados pelo município.
Os recursos financeiros afetos às transferências de novas competências para as freguesias provirão do orçamento municipal, após deliberação das assembleias municipal e de freguesia, e serão calculados tendo por base a estrutura de despesas e de receitas que os municípios respetivos têm com o exercício dessas mesmas competências, não podendo ser inferiores aos constantes de acordos ou contratos respeitantes às mesmas matérias e serão financiados por receita proveniente do Fundo de Equilíbrio Financeiro e da participação variável no IRS dos respetivos municípios, sendo transferidos pela DGAL até ao dia 15 de cada mês, por dedução àquelas transferências para cada município.
Para o início do exercício das novas competências em 2019, o prazo de comunicação à DGAL ocorre no prazo de 15 dias corridos após as deliberações legalmente previstas, sendo que o processamento do primeiro duodécimo relativo às transferências de novas competências para as freguesias ocorre no mês seguinte ao da entrada na DGAL dessa comunicação.
Relativamente ao ano de 2019, as freguesias que não pretendam a transferência de competências previstas no presente decreto-lei comunicam esse facto à DGAL, após prévia deliberação dos seus órgãos deliberativos, até 60 dias corridos após a entrada em vigor do novo decreto-lei.
Há, no entanto, que voltar a algo que devia ser prévio a esta alteração: a redefinição do quadro legal das freguesias, hoje resultado duma imposição economicista do tempo da troika que arbitrariamente esquartejou o poder local em geografias variáveis.
Sob a semântica intenção do” reforço da coesão nacional”, da “melhoria da prestação dos serviços públicos locais” ou da "otimização da atividade dos diversos entes autárquicos”, a reforma imposta pelo memorando da troika nasceu torta e sobretudo inquinada pela ausência duma real e efetiva vontade originária provinda dos interessados na sua própria reforma, essa sim, o verdadeiro paradigma da administração local democrática.
Chamando racionalização à sanha dos cortes cegos, e organização do território a um critério que trata por igual o que é de si saudavelmente desigual, a reorganização das freguesias já então acenou com a libertação de recursos financeiros, alardeando uma suposta otimização da alocação dos recursos existentes e o reforço das atribuições e competências próprias, acompanhado dum envelope financeiro, prometendo na altura uma majoração de 15% da participação no Fundo de Financiamento de Freguesias (FFF), até ao final do mandato seguinte à fusão aos que sem discussão acatassem o critério preconizado na proposta.
Foi uma outorga a jeito de canga e não uma auscultação ou participação verdadeiramente democrática o que então aconteceu. Expressões como “obrigatoriedade” de reorganização administrativa, ou “proximidade” (quando a provável nova sede da freguesia pode vir a ficar a mais de 20 km), mais não são que expressões semânticas, alem de que a solução apresentada para a designação das freguesias anexadas criou uma nomenclatura extensa e despida de identidade.
E as novas freguesias, alem de nascerem tortas, nasceram obtusas, isto é, passaram a designar-se «União das Freguesias», seguida das denominações de todas as freguesias anteriores que nela se agregaram.
Esta reforma atabalhoada mexeu com o Portugal profundo, a sua idiossincrasia e a vontade popular muitas vezes no passado escrita em sangue contra os poderosos, e só um contrato com as populações de génese democrática pode tornar pacífica uma lei que a todos contente, por a todos respeitar.
Penalizadas, as autarquias, e as freguesias em particular, foram o parente pobre da crise. S. Martinho, onde os 30 cavaleiros donatários de Sintra se instalaram depois do foral de 1154, onde os templários de Gualdim Pais zelaram pela fé, que viu o Chão de Oliva e a Xentra moura, a judiaria e a alpendrada, o nascimento e a morte de reis, o Lawrence e o Hotel Nunes, acolheu Ferreira de Castro e escutou Zé Alfredo, foi engolida por uma mera decisão administrativa que a ignorou e aviltou, criando a amorfa União das Freguesias de Sintra, com um nome extenso, e antes de se ver o montante do cheque deveria ver-se quem é o legítimo portador, a “nova” entidade, ou a “antiga”, por quem muitos clamaram mas parece terem esquecido. O tempo tudo apaga. Contudo, antes das novas competências, não seria bom voltar a refletir sobre a matriz geográfica das mesmas? Perguntar não ofende.

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